No poema Vozes d’África, de Castro Alves, que tem como tema central a escravidão, é retratado o sofrimento dos escravizados africanos que eram retirados à força de suas terras e levados ao Brasil. Nele, o eu-lírico fala diretamente com Deus, implorando para que ele ouça o grito que seu povo entoa aos céus há dois mil anos.
Vozes d’África
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…
(…)
Minhas irmãs são belas, são ditosas…
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.
(…)
A Europa é sempre Europa, a gloriosa!…
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!…
Sempre a láurea lhe cabe no litígio…
Ora uma c’roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela — doudo amante —
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.
…………………………………
Mas eu, Senhor!… Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro… bebe o pranto a areia ardente;
Talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão…
(…)
Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz…
Quando eu passo no Saara amortalhada…
Ai! dizem: “La vai África embuçada
No seu branco albornoz…”
(…)
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?…
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!…
…………………………………….
(…)
Vi a ciência desertar do Egito…
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa — arrebatada —
Amestrado falcão!…
Cristo! embalde morreste sobre um monte…
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal…
Hoje em meu sangue a América se nutre
— Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais… irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.
…………………………………..
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p’ra os crimes meus!…
Há dois mil anos… eu soluço um grito…
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!…