Pedro Ivo, de Castro Alves

Neste extenso, bonito e impactante poema de Castro Alves, vemos uma homenagem a Pedro Ivo Veloso da Silveira, militar e revolucionário brasileiro que liderou a “Revolução Praieira”, na província de Pernambuco, entre 1848 e 1850. Essa revolução repudiava a Monarquia e defendia um reformismo político, a instauração da República e uma maior independência para as províncias.

Leia o poema “Pedro Ivo” de Castro Alves na íntegra a seguir e, ao final, confira uma análise completa dele, desde a estrutura até as referências feitas por Castro Alves.

 

Pedro Ivo, de Castro Alves

Sonhava nesta geração bastarda,
Glorias e liberdade!…
…………………………………
Era um leão sangrento que rugia,
Da gloria nos clarins se embriagava,
E vossa gente pallida recuava,
Quando ele apparecia.
(Alvares de Azevedo)

I

Rebramam os ventos… Da negra tormenta
Nos montes de nuvens galopa o corsel…
Relincha… troveja… galgando no espaço
Mil raios desperta co′as patas revel.

É noite de horrores… nas grunas celestes,
Nas naves etéreas o vento gemeu…
E os astros fugiram, qual bando de garças
Das aguas revoltas do lago do céu.

E a terra é medonha… As arvores núas
Espectros semelham fincados de pé,
Com os braços de mumias, que os ventos retorcem,
Tremendo a esse grito, que estranho lhes é.

Desperta o infinito… Co′a boca entreaberta
Respira a borrasca do largo pulmão.
Ao longe o oceano sacode as espaduas
— Encélado novo calcado no chão.

É noite de horrores… Por ínvio caminho
Um vulto sombrio sozinho passou,
Co′a noite no peito, co′a noite no busto
Subiu pelo monte… nas cimas parou.

Cabelos esparsos ao sopro dos ventos,
Olhar desvairado, sinistro, fatal.
Dirieis estátua roçando nas nuvens,
P′ra qual a montanha se fez pedestal.

Rugia a procela — nem ele escutava!…
Mil raios choviam — nem ele os fitou!
Com a destra apontando bem longe a cidade.
Após largo tempo sombrio falou!

II

Dorme, cidade maldita,
Teu sono de escravidão!…
Dorme, vestal da pureza,
Sobre os coxins do Sultão!…
Dorme, filha da Georgia.
Prostituta em negra orgia,
Sê hoje Lucrecia Borgia
Da desonra no balcão!…

Dormir?!… Não! Que a infame grita
Lá se alevanta fatal…
Corre o champagne e a desonra
Na orgia descomunal…
Na fronte já tens um laço…
Cadeias de ouro no braço,
De perolas um baraço,
— Adornos da satural!

Louca!… Nem sabe que as luzes,
Que acendeu p′ra as saturnais,
São do enterro de seus brios
Tristes círios funerais…
Que o seu grito de alegria
É o estertor da agonia,
A que responde a ironia.
Do riso de Satanaz!…

Morreste… E ao teu saimento
Dobra a procela no céu,
E os astros — olhar dos mortos —
A mão da noite escondeu.
Vê!… Do raio mostra a lampa
Mão de espectro, que destampa
Com dedos de ossos a campa,
Onde a gloria adormeceu.

E erguem-se as lápidas frias,
Saltam bradando os heróis:
«Quem ousa da eternidade
Roubar-nos o sono a nós?»
Responde o espectro; — A desgraça!
Que a realeza que passa,
Com o sangue de vossa raça,
Cospe lodo sobre vós!…»

Fugi, fantasmas augustos!
Caveiras que coram mais
Do que essas faces vermelhas
Dos infames pariás!…
Fugi do solo maldito!…
Embuçai-vos no infinito!…
E eu por detrás do granito
Dos montes ocidentaes.

Eu também fujo… Eu… fugindo!…
Mentira desses vilões!

Não foge a nuvem trevosa
Quando em azas de tufões
Sobe dos céus à esplanada,
Para tomar emprestada
De raios uma outra espada,
A luz das constelações…

Como o tigre na caverna
Afia as garras no chão,
Como em Elba amola a espada
Nas pedras — Napoleão,
Tal eu — vaga encapelada,
Recuo de uma passada,
P′ra levar de derribada
Rochedos, reis, multidão…!

III

«Pernambuco! Um dia eu vi-te
Dormido imenso ao luar,
Com os olhos quase cerrados,
Com os lábios — quase a falar…
Do braço o clarim suspenso,
— O punho no sabre extenso
De pedra — recife imenso.
Que rasga o peito do mar…

E eu disse: — Silêncio, ventos!
Cala a boca, furacão!

No sonho daquele sono
Perpassa a Revolução!
Este olhar que não se move
‘Stá fito em — Oitenta e Nove
Lê Homero — escuta Jove…
Robespierre — Dantão.

Naquele crânio entra em ondas
O verbo de Mirabeau…
Pernambuco sonha a escada,
Que tambem sonhou Jacob;
Scisma a Republica alçada,
E pega os copos da espada,
Enquanto em su′alma brada:
«Somos irmãos, Vergniaud!»

Então repeti ao povo:
— Desperta do sono teu!
Sansão! derroca as colunas!
Quebra os ferros, Prometeu!
Vesúvio curvo — não pares,
Ígnea coma solta aos ares,
Em lavas inunda os mares,
Mergulha o gladio no céu.

Republica!… Voo ousado
Do homem feito condor!

Raio de aurora inda oculta.
Que beija a fronte ao Thabor
Deus! Porqu′emquanto que o monte
Bebe a luz desse horizonte,
Deixas vagar tanta fronte,
No vale envolto em negror?!…

Inda me lembro… Era há pouco
A luta!… horror!… confusão!…
A morte voa rugindo
Da garganta do canhão!…
O bravo a fileira cerra!…
Em sangue ensopa-se a terra!…
E o fumo — o corvo da guerra —
Com as asas cobre a amplidão…

Cheguei!… Como nuvens tontas,
Ao bater no monte… além,
Topam, rasgam-se, recuam…
Taes a meus pés vi também
Hostes mil na luta inglória…
Da pirâmide da gloria
São degraus… Marcha a vitória,
Porque este braço a sustem.

Foi uma luta de bravos,
Como a luta do jaguar,

De sangue enrubesce a terra,
De fogo enrubesce o ar!…
Oh!… mas quem faz que eu não vença?
— O acaso… — avalanche imensa.
Da mão do Eterno suspensa,
Que a ideia esmaga ao tombar!…

Não importa! A liberdade
É como a hidra, o Antheu.
Se no chão rola sem forças,
Mais forte do chão se ergueu…
São os seus ossos sangrentos
Gladios terriveis, sedentos…
E da cinza solta aos ventos
Mais um Graccho apareceu!…

Dorme, cidade maldita,
Teu sono de escravidão!
Porém no vasto sacrário
Do templo do coração,
Ateia o lume das lampas,
Talvez que um dia dos pampas
Eu, surgindo, quebre as campas,
Onde te colam no chão.

Adeus! Vou por ti, maldito,
Vagar nos ermos paúes.

Tu ficas morta, na sombra,
Sem vida, sem fé, sem luz!…
Mas quando o povo acordado
Te erguer do tredo valado,
Virá livre, grande, ousado,
De pranto banhar-me a cruz!…

IV

Assim falara o vulto errante e negro,
Como a estatua sombria do revés.
Uiva o tufão nas dobras de seu manto,
Como um cão do senhor ulula aos pés…

Inda um momento esteve solitário
Da tempestade semelhante ao deus,
Trocando frases com os trovões no espaço,
Raios com os astros nos sombrios céus…

Depois sumiu-se dentre as brumas densas
Da negra noite — de su′alma irmã…
E longe… longe… no horizonte imenso
Ressonava a cidade cortesã!…

Vai!… Do sertão esperam-te as Termópilas;
A liberdade inda pulula ali…
Lá não vão vermes perseguir as águias,
Não vão escravos perseguir a ti!

Vai!… Que o teu manto de mil balas roto
É uma bandeira que não tem rival.
— Desse suor é que Deus faz os astros.
Tens uma espada, que não foi punhal.

Vai, tu que vestes do bandido as roupas
Mas não te cobres de uma vil libré.
Se te renega teu país ingrato,
O mundo, a gloria tua pátria é!…

V

E foi-se… E inda hoje nas horas errantes,
Que os cedros farfalham, que ruge o tufão,
E os lábios da noite murmuram nas selvas
E a onça vagueia no vasto sertão.

Se passa o tropeiro nas ermas devesas,
Caminha medroso, figura-lhe ouvir
O infrene galope d′Espectro soberbo.
Com um grito de gloria na boca a rugir.

Que importa se o tum′lo ninguém lhe conhece?
Nem tem epitáfio, nem leito, nem cruz!…
Seu túmulo é o peito do vasto universo,
Do espaço — por cúpula — as conchas azuis!…

Mas contam que um dia rolara o oceano
Seu corpo na praia, que a vida lhe deu…
Enquanto que a gloria rolava sua alma
Nas margens da historia, na areia do céu!…

Divisão do poema “Pedro Ivo” e análise

Pintura desconhecida (ao menos para mim, não consegui encontrar o autor) representando os conflitos da Revolução Praieira.

Pintura desconhecida (ao menos para mim, não consegui encontrar o autor) representando os conflitos da Revolução Praieira.

O poema foi dividido por Castro Alves em cinco partes:

I – Há a descrição de um cenário tempestuoso, com Pedro Ivo surgindo como uma figura sombria e ameaçadora. Ele aparece como um herói solitário, desafiador, colocando-se à frente da tempestade e da escuridão. As metáforas são poderosas e carregadas de emoção e tensão, criando uma paisagem em tumulto.

II – Faz-se diversas menções à “Cidade maldita”, que dorme no “sonho da escravidão”, sendo uma crítica à monarquia (e possivelmente à sociedade) da época, que ainda permitia a escravidão. Ele condena a luxúria e os excessos, sugerindo que as festividades são uma mera preparação para o próprio funeral da cidade. Nesse ponto, Pedro Ivo faz um discurso impactante, ameaçando voltar à cidade para “quebrar as correntes da Escravidão”. Convém lembrar que Castro Alves criticava duramente a escravidão (seu mais famoso poema é “O Navio Negreiro“), sendo conhecido como “Poeta dos Escravos”.

III – Aqui o poema é voltado a Pernambuco, província que é descrita como “adormecida sob a luz do luar”, mas que está “sonhando com a revolução”. Diversas figuras históricas são citadas, como Robespierre, Danton, Mirabeau e Vergniaud, sugerindo que o espírito da revolta está prestes a despertar e a revolução prestes a eclodir. Uma batalha então é descrita, uma batalha pela liberdade que, embora aparentemente perdida, terá um desfecho diferente.

IV – Aqui a atenção do poema sai de Pernambuco e volta-se para a figura do próprio Pedro Ivo, que “desparece na tempestade” (uma metáfora para a morte), deixando para trás apenas o “eco de sua condenação”. Embora descrito como um “bandido” (“tu que vestes do bandido as roupas”), é reconhecido como um revolucionário, que luta pela liberdade e pelo fim da escravidão (“Mas não te cobres de uma vil libré”).

V – Por fim, na última seção do poema, vemos o herói após a sua morte. Sem túmulo nem monumento, a única lembrança é o eco de seu grito de liberdade, que ressoa no sertão e em seus habitantes. Temos aqui um contrastante entre a rapidez da vida e a longevidade das ideias e dos ideais; embora Pedro Ivo tenha partido, seu legado continua vivo e a inspirar outras pessoas.

Referências e alusões do poema

Veja a seguir algumas das referências e alusões feitas no poema Pedro Ivo, de Castro Alves:

  • “Como em Elba amola a espada Nas pedras — Napoleão”: Referência a Napoleão Bonaparte, imperador da França que, após sua derrota na Batalha de Leipzig, foi exilado e preso na ilha de Elba. Ele aparecer “amolando sua espada” nesse trecho, como se estivesse se preparando, é uma referência ao fato de que, depois de preso, retornou para a França, tornando-se novamente imperador.
  • “Fugi, fantasmas augustos! Caveiras que coram mais Do que essas faces vermelhas Dos infames pariás!…”: “pariás” é um termo usado para se referir às castas inferiores na Índia. Castro Alves a usou metaforicamente para indicar todos aqueles que foram marginalizados/rejeitados pela sociedade.
  • “Encélado novo calcado no chão”: Encélado é um gigante da mitologia grega que, segundo a crença, foi enterrado sob o Monte Etna por Atena. Uma metáfora, nesse caso, para ser esmagado por uma força superior.
  • “Sê hoje Lucrecia Borgia Da desonra no balcão!…”: Lucrecia ou Lucrezia Borgia foi filha de Rodrigo Borgia, que se tornou Papa Alexandre VI. Foi acusada de vários crimes e pecados, e seu nome é citado no poema como uma referência à “cidade maldita”, corrompida e desonrada como a reputação de Lucrecia.
  • “Somos irmãos, Vergniaud!”: Referência a Pierre Vergniaud, um dos líderes dos Girondinos na Revolução Francesa. No poema, Pedro Ivo identifica-se com Vergniaud, já que ambos foram defensores da liberdade e da república.
  • “E da cinza solta aos ventos Mais um Graccho apareceu!..”: Referência aos irmãos Gracchus, Tiberius e Gaius, ambos políticos romanos conhecidos pelas reformas populistas e pela defesa dos mais pobres.
  • “Do verbo de Mirabeau…”: Menção a Honoré Gabriel Riqueti, o “Conde de Mirabeu”, figura importante da primeira fase da Revolução Francesa. No poema também são citados Maximilien Robespierre e Danton, também igualmente importantes na revolução.
  • “Pernambuco sonha a escada, / Que também sonhou Jacob”: Jacob ou Jacó é um personagem bíblico, que, no Livro de Gênesis, sonha um escada que vai da terra ao céu, com anjos subindo e descendo, uma conexão entre Deus e a humanidade. No poema, Pernambuco está sonhando com uma escada, mas uma que conecta o estado com a liberdade.

Leitura recomendada

Para conhecer ainda mais sobre Pedro Ivo, recomendamos que leia a publicação abaixo:

 

Representação mais famosa do revolucionário Pedro Ivo Veloso da Silveira, líder da "Revolução Praieira". Ilustrando o poema "Pedro Ivo", de Castro Alves.
Representação mais famosa do revolucionário Pedro Ivo Veloso da Silveira, líder da "Revolução Praieira". Ilustrando o poema "Pedro Ivo", de Castro Alves.
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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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