Crianças, de Auta de Souza – Análise

O poema “Crianças”, de Auta de Souza, é uma homenagem à infância e um lamento pelo seu passageiro encanto, encerrando com um desejo de retorno aos dias da “primeira infância”, um sentimento comum que temos ao querer reviver momentos de felicidade.

Crianças, de Auta de Souza

Moro na rua da Ventura. Perto,
Há um ninho – é a aula das meninas;
Trazem-me sempre o coração desperto
Os risos dessas almas cristalinas.

Sinto-me alegre. Vivo sem saudade,
Sem, desconforto, sem desesperanças.
Sou bem feliz na minha soledade
Ouvindo o pipilar d’essas crianças.

A’s duas horas ergo-me da banca
Onde medito: vai fechar-se a escola…
Que bem me faz esta algazarra franca
De aves gentis que voam da gaiola!

Gosto de vê-las quando saem rindo
Alegremente, as mansas andorinhas.
São doze ao todo. Que rebanho lindo
De inocentes e castas ovelhinhas!

Vem na frente a maior. Já quase moça,
Olhos azuis e fronte cismadora:
Uma açucena de esquisito louça,
De face cor de neve e trança loura.

É séria e triste. Chama-se Laurita;
Tem uma voz que me seduz e encanta;
Veste sempre de azul e é tão bonita
Com os seus ares de pequena santa!

Passa depois Sophia, uma criança
De olhar mais negro do que a noite escura.
Vive sempre a sorrir como a Esperança,
Vive sempre a cantar como a Ventura!

E aquela doida que lá vai correndo
Em risco de tombar nas pedras duras?
É Lúcia. A vida quer levar fazendo
Todos os dias essas travessuras.

Depois, Sarah e Rebecca… Borboletas
Irmãs no olhar, no rosto e nos vestidos;
São dois anjinhos de madeixas pretas,
Gêmeos sorrisos, corações unidos!

Segue-as a linda e ingênua moreninha
De nome terno e encantador: Dolores,
Uma singela e pálida amiguinha
Que todas as manhãs guarda-me flores.

Hoje, está triste. Nem me deu bom dia!
Deixou cair as rosas pela estrada.
– Que é do teu canto, doce cotovia?
(Reparem ela como vai zangada!)

Desce em seguida a meiga Valentina,
Dez anos tem. Parece um Querubim…
Uma açucena pálida e franzina,
Um encantado e pálido jasmim!

E a Inocência? Vem chorando tanto!
Que te fizeram, minha sensitiva?
Quem foi que os olhos te inundou de pranto,
Quem te causou essa amargura viva?

Já sei: a mestra quis ralhar contigo,
E foi bem feito, colibri travesso!
Fiquei alegre com o teu castigo;
Por que não me dás beijos quando os peço?

Ouço chamar pelo meu nome… É Santa,
Um diabrete muito engraçadinho…
– Soube a lição? – Não me responde, canta…
– Graça inocente, voa para o ninho!

Puxando a trança de Lucília, passa
Celeste, a loura; correm como doidas…
Por que é que tarda a pequenina Garça,
A mais mimosa e mais gentil de todas!

Ei-la! É um anjo a divagar na terra,
Um beija-flor que prendem na gaiola…
Quanta candura o seu sorriso encerra,
Quanta inocência d’esse olhar se evola!

Como eu a amo e que tristeza infinda,
Sinto nos dias em que não a vejo…
Ah! como adoro essa mãozinha linda,
Tão pequenina que parece um beijo!

E eu digo ao ver das criancinhas mansas
O bando alegre e luminoso e forte:
Vós sois no mundo claras esperanças,
Rosas da vida, embalsamando a morte!

O vosso olhar é como um livro aberto
Onde soletro as minhas alegrias…
Oásis santo num cruel deserto,
Negro e sem fim, de fundas agonias.

Em breve as férias chegarão, e eu triste
Quantas semanas vou passar distante
De vosso olhar onde a Candura existe,
De vosso riso claro e hilariante!

E para não ficar tão só, tão louca,
Presa da cisma ao doloroso enleio,
Dai-me as cantigas que levais na boca,
Dai-me as quimeras que guardais no seio!

Pois já suspiro pela aurora mansa
Que há de trazer com o sol do novo ano,
Para a voss’alma mais uma esperança,
Para a minh’alma mais um desengano.

Anjos da terra, flores animadas,
Aves do céu que a chilrear passais…
Como vos quero, evocações amadas
Do meu passado que não volta mais!

Ah, quem me dera os sonhos perfumados
D’aquele tempo de ideal fragrância…
Cantai! cantai! ó rouxinóis sagrados,
Lembrai-me os dias da primeira infância!

Análise do poema “Crianças”

O poema “Crianças” de Auta de Souza mostra um eu-lírico nostálgico a observar um grupo de meninas ao sair da escola.

A narradora, reclusa, encontra alegria e consolo nas interações e nas personalidades distintas das crianças, que lembram a ela o fulgor e a inocência da juventude.

Com descrições detalhadas, cada criança é associada a símbolos da pureza – como açucenas (tipo de planta) e serafins (tipo de anjo) -, bem como à natureza – através de aves e flores.

O ato de observar essas “criancinhas mansas” guia a narradora em uma meditação sobre a essência da vida, a inevitabilidade da morte e o fortalecimento da esperança, essas últimas representadas metaforicamente como “rosas da vida, embalsamando a morte”.

Além disso, a poesia é marcada por uma estrutura que equilibra a descrição das crianças com os sentimentos internos da narradora.

O poema vai além do mero retrato do exterior para refletir sobre o estado interior de uma alma que, embora solitária, encontra-se ligada ao mundo externo pela contínua renovação da juventude e pela perpetuação dos ciclos da vida.

Ironicamente, as mesmas crianças que trazem alegria também anunciam um futuro vazio com a chegada das férias, uma metáfora para os ciclos de presença e ausência que permeiam a existência humana.

A narrativa intercala elementos da natureza com a vida humana, usando um simbolismo que realça a conexão do indivíduo com o ciclo maior do mundo natural.

Crianças, de Auta de Souza - Análise
Pintura "A Childhood Idyll", de William-Adolphe Bouguereau
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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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