O poema Crepúsculo, de Auta de Souza, é uma viagem sensível ao entardecer, entrelaçando o ser interior com o espetáculo natural da mudança do dia para a noite.
“Crepúsculo”, de Auta de Souza
Há pelo Espaço um ciciar dolente
De prece, em torno da Igrejinha em ruína…
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O Angelus soa. Vagarosamente
A noite desce, plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
Chorando a tarde, a noiva peregrina.
Há pelo Espaço um ciciar dolente
De prece em torno da Igrejinha em ruína…
Pássaros voam compassadamente;
Treme no galho a rosa purpurina…
E eu sinto que a tristeza vem suspensa
Sobre as asas da noite erma e sombria…
E que, n’essa hora de saudade imensa,
Rindo e chorando desce ao coração:
Toda a doçura da melancolia,
Todo o conforto da recordação.
Utinga – Novembro de 1898
Análise do poema “Crepúsculo”
O poema “Crepúsculo” de Auta de Souza nos convida a um momento de reflexão na transição do dia para a noite. A partir do título, já antecipamos esse cenário de luzes e sombras, onipresente em toda a obra.
No início, o espaço é preenchido por um “ciciar dolente”, sugerindo um som suave e triste que parece emanar do entorno de uma igreja em ruínas. Esse som pode ser uma oração ou um lamento, marcando a solenidade do momento, enquanto o Angelus, que é um sino tocado para invocar a oração da Ave Maria, amplifica a conexão entre o divino e o terreno.
A descida vagarosa da noite é descrita como “plácida e divina”, um contraste pacífico com o gemido do “coração doente” da poeta. A tarde é personificada como “a noiva peregrina”, isto é, temporária e em constante movimento, assim como a vida.
A sequência dos versos aprofunda essa imersão na cena crepuscular através das aves que voam com cadência e uma rosa que vibra delicadamente no galho, indicando uma sintonia natural com a passagem do tempo.
Esses elementos da natureza refletem o estado emocional da voz poética: a tristeza que “vem suspensa”, como se fosse carregada pela obscuridade da noite. É como se a noite trouxesse consigo o peso da saudade, um sentimento imenso que percorre o ser.
Por fim, o poema fecha com uma dualidade: a tristeza e a alegria coexistem no mesmo espaço emocional, trazendo “toda a doçura da melancolia” e “todo o conforto da recordação”. Esse contraste revela um reconhecimento de que a melancolia pode ser um sentimento reconfortante, impregnado de doçura e memórias.