No poema “Ave”, publicado no livro “Horto”, Auta de Souza delicadamente borda a linha tênue entre a morte e a elevação da alma, homenageando esse voo póstumo em uma dimensão repleta de significado espiritual e emocional.
“Ave”, de Auta de Souza
Quando morre uma criança,
Diz-se que o pálido anjinho
Voou como uma esperança.
Foi para o céu direitinho.
Mas nossa mente se cansa
A voar de ninho em ninho,
Interrogando a lembrança,
Quando morre um passarinho.
Só eu, se alguém diz que a vida
De uma avezinha querida
Se extingue como um clarão.
Ponho-me a rir, pois, divina!
Ouço cantar, em surdina,
Tu’alma em meu coração.
Análise do poema “Ave”
Em “Ave”, Auta de Souza explora a universalidade da morte e a singularidade da perda. A abertura do poema com a referência à morte de uma criança – comparada a um anjinho que ascende ao céu – é uma metáfora reconfortante de purificação e libertação. A morte, nesse contexto, é uma passagem direta para uma existência superior, quase uma redenção da inocência.
Em contraste, a segunda estrofe mergulha na introspecção mais escura do luto ao contemplar a morte de um passarinho. Auta de Souza descreve o processo de luto como um voo exaustivo de “ninho em ninho”, uma busca incessante por respostas dentro do labirinto da memória, em cada recanto onde a presença amada, no passado, se aninhava.
O poema chega ao fim na terceira estrofe com uma reviravolta introspectiva, onde a poeta rejeita a noção de que a morte de um ente amado é um fim abrupto, comparado ao apagar de um “clarão”. Em lugar do desespero, ela sorri, encontrando consolo divino no murmúrio persistente da alma da ave querida “em surdina”, ou seja, num som baixo e suave, representando uma continuidade mística que reside no coração. Esse encerramento é um belo testamento à memória, ao amor eterno e à capacidade humana de reter a essência do que foi perdido.