O poema “Bohemias” de Auta de Souza, é um convite para entrar em uma paisagem de emoções translúcidas, onde o choro não é mero sinal de tristeza, mas uma linguagem complexa e profunda, que comunica tanto a emoção quanto a a dor e a beleza, que existem juntas.
“Bohemias”, de Auta de Souza
Quando me vires chorar, Que sou infeliz não creias; Eu choro porque no Mar Nem sempre cantam sereias. Choro porque, no Infinito, As estrelas luminosas Choram o orvalho bendito, Que faz desabrochar as rosas. Do lábio o consolo santo É o riso que vem cantando... O riso do olhar é o pranto: Meus olhos riem chorando. O seio branco da aurora Derrama orvalhos a flux... O círio que brilha chora: A dor também fere a luz? Teus olhos cheios de ardores Aninham rosas nas faces... Que seria dessas flores, Responde, se não chorasses? Sou moça e bem sabes que A moça não tem martírios; Se chora sempre, é porque Pretende imitar os lírios. Enquanto eu viver no mundo, Meus olhos hão de chorar... Ah! como é doce o profundo Soluço eterno do Mar! Do lábio o consolo santo É o riso que vem cantando... O riso do olhar é o pranto: Meus olhos riem chorando.
Análise do poema “Bohemias”
Auta de Souza em “Bohemias” explora a dinâmica entre lágrimas e sorrisos num retalho de metáforas celestiais e terrenas. O choro retratado é um fenômeno natural e universal: as sereias que ocasionalmente suspendem seu canto nas águas do mar para chorar, as estrelas que “choram” o orvalho fecundo no infinito céu. Ela traça um paralelo entre a natureza essencial do cosmos e a natureza essencial da humanidade, enfatizando a interconexão de todas as coisas na expressão de sentimentos, especialmente no que diz respeito ao choro.
O refrão que se repete como um eco “Do lábio o consolo santo / É o riso que vem cantando… / O riso do olhar é o pranto: / Meus olhos riem chorando.” estampa a ambiguidade dos sentimentos humanos, sugerindo que as lágrimas podem ser portadoras de alegrias e que um sorriso pode mascarar a tristeza – ou que, talvez, a alegria e a tristeza não sejam tão separadas quanto parecem. Uma lição que o filme DiveridaMente, da Pixar, ensina muito bem!
Nessa obra, o nascer do sol e o círio (vela usada em cerimônias religiosas) reforçam o contraste entre luz e escuridão, e por sua vez, entre felicidade e dor. Há uma sugestão de que até mesmo elementos inanimados e sem vida sentem e compartilham agonias. A poetisa sugere que a expressão da dor é algo necessário, até desejado, como o solo fértil é necessário para a floração das experiências humanas retratadas pelas rosas que brotam das lágrimas.
O verso final, “Ah! como é doce o profundo / Soluço eterno do Mar!”, ressoa como uma aceitação serena da tristeza, que faz parte da vida, apontando para algo além da dor: uma doçura existente na própria capacidade de sentir profundamente.