“Vou-me Embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, é um poema que se tornou um marco da literatura modernista brasileira, presente na obra Libertinagem (1930).
Em um tom melancólico, o eu-lírico expressa o desejo de escapar de uma realidade opressiva e infeliz, refugiando-se em um lugar imaginário onde tudo parece ser perfeito: Pasárgada.
Esse local utópico representa uma fuga idealizada, onde ele é amigo do rei, pode realizar seus desejos e viver uma vida plena e satisfatória. O poema fala da busca pela felicidade e da insatisfação com o mundo real, explorando um universo de sonhos e liberdades.
“Vou-me Embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Análise do poema “Vou-me Embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira
“Vou-me Embora pra Pasárgada” explora a ideia de fuga como uma resposta à insatisfação com a vida cotidiana.
No poema, Pasárgada (nome de uma antiga cidade da Pérsia) é uma espécie de paraíso distante, onde o eu-lírico imagina poder escapar de suas frustrações e angústias. Este lugar idealizado é muito diferente da realidade opressiva que ele enfrenta, como revelado já no segundo verso: “Aqui eu não sou feliz“. A repetição dessa ideia reforça o desespero e a necessidade urgente de mudança. O poema, portanto, faz uma jornada mental rumo ao impossível, em busca de uma felicidade que o mundo real não oferece.
Pasárgada, descrita como uma terra de abundância e prazeres, onde “a existência é uma aventura de tal modo inconsequente“, serve como metáfora para a liberdade plena. Manuel Bandeira usa essa cidade mítica, que historicamente remete ao Império Persa, como um símbolo de uma utopia pessoal. Lá, ele não apenas realiza seus desejos materiais, como ter “a mulher que eu quero na cama que escolherei“, mas também encontra um escape emocional e existencial. Essa utopia inclui desde prazeres simples, como “andar de bicicleta” e “tomar banhos de mar“, até consolos mais profundos, como o direito de sonhar e ser amigo de um rei.
O poema sugere uma ruptura total com a vida convencional. Em Pasárgada, o eu-lírico encontra uma “outra civilização“, com novos valores e liberdades, onde inclusive a dor profunda e existencial pode ser suavizada. Isso fica evidente quando ele afirma que, mesmo nos momentos mais sombrios, quando “de noite me der vontade de me matar“, Pasárgada ainda oferece consolo. É como se a própria ideia dessa fuga fosse um antídoto contra os sentimentos de tristeza e desespero, uma válvula de escape psíquica que impede a consumação do desejo de autodestruição.
Outro aspecto notável no poema é a presença de figuras míticas e imaginárias que povoam Pasárgada. A mãe-d’água, por exemplo, aparece como uma entidade mágica que “conta as histórias” da infância do eu-lírico, remetendo à nostalgia e ao conforto que as memórias da juventude podem proporcionar. Vemos no poema elementos do sonho e do imaginário, misturando o desejo por prazeres mundanos com o fantástico e o onírico. Isso reforça ainda mais a cidade extrapolando os limites da realidade.
No entanto, por trás dessa atmosfera de liberdade e prazer, há uma melancolia implícita. A fuga para Pasárgada é uma forma de lidar com a tristeza irreparável do presente. Quando o eu-lírico afirma que lá ele poderá viver do jeito que quiser, sem amarras, é justamente porque no mundo real essas possibilidades não existem. Pasárgada é mais uma construção mental do que uma esperança concreta.
A utopia de Pasárgada, com suas “prostitutas bonitas” e seu “processo seguro de impedir a concepção“, aponta também para uma crítica indireta à sociedade e seus padrões morais. Lá, os tabus não existem, e a liberdade sexual é plena e os problemas da vida real são resolvidos por soluções mágicas e instantâneas. Muitíssimo diferente da nossa realidade.