Pesadelo, de Castro Alves – Análise

“Pesadelo”, de Castro Alves, é um longo poema narrativo e dramático que se divide em cinco partes, contando uma história de amor, traição, assassinato e loucura.

A obra é ambientada em uma atmosfera sombria e melancólica, explorando os aspectos mais profundos das emoções humanas e as consequências trágicas das paixões desenfreadas.

Pesadelo, de Castro Alves

(POEMETO)

I. O RENDEZ-VOUS

ERA UMA NOITE perfumada e lânguida.
Contava a brisa amores à folhagem.
Da lua num olhar voluptuoso
Envolvia-se cândida paisagem.
Quais lágrimas do céu, brancos orvalhos
Trementes penduravam-se dos galhos.

E as flores suspiravam molemente
Da brisa ao receber os doces beijos.
E o mar batia túmido nas praias
Qual seio de donzela a arfar desejos.
E nuvens lá no céu brancas passavam,
Como garças formosas que adejavam.

Quebrando a solidão longínquo canto
Trouxe a brisa de terno bandolim,
Voluptuoso, ardente e delicado,
Como d’harpa de etéreo serafim.
E o canto — todo amores — todo gozo —
Ia ecoando belo e languoroso.

Era Joseph — o trovador ardente,
Que o silêncio da noite perturbava.
Era o bardo formoso, apaixonado
Que a Andaluza fogosa fascinava.
Pálido o rosto, negro o seu cabelo,
Olhar cheio de luz… Ele era belo.

Depois calou-se a voz… Como essas fadas
Que à noite, quando voa a fantasia,
Vemos, sentimos belas, vaporosas,
— Anjos que o ideal somente cria; —
Tal ou mais linda, abrindo uma janela,
Surge uma virgem fascinante e bela.

Era um rosto formoso de madona,
Voava-lhe a madeixa destrançada.
E o seio que tremia, — pelas rendas
A lua olhava louca, apaixonada.
Tinha um pé que invejara uma criança.
Bem feliz quem ao peito lhe descansa!…

Depois uns lábios férvidos se uniram
Entre beijos dois nomes se escutaram…
Dois nomes e mil beijos amorosos
Nos lábios as palavras encerraram…
Dois nomes em que a vida toda sia…
Dois poemas de santa poesia…

E a porta após rodou por sobre os quícios,
E a murmurar deixou passar o amante…
Somente um temo e lânguido suspiro
Ouvi trazer a brisa sussurrante…
E a lua então num lânguido desmaio
Ciumenta lançou o último raio…

II. O ASSASSINO

Uma noite era negro firmamento,
Monótona caía fria chuva,
E a terra envolta em véu de densas trevas
Parecia chorosa uma viúva;
Só as aves da noite regeladas
Gritando se escondiam nas moradas.

Trazia o vento o silvo da rajada
Que lúgubre zunia nos pinheiros,
Trazia gritos pávidos, medrosos,
Talvez dalguns perdidos caminheiros,
E no embate co’a branca penedia,
O mar sinistro e tétrico rugia.

De um lampião à luz incerta e vaga
Um vulto negro e triste s’enxergava;
Coberto do capote e do sombrero,
O rosto macilento só mostrava…
Mas dalgum raio ao brilho repentino
Conhecereis — Jorge — o libertino —

Que fazes, Jorge, a estas horas mortas?
A noite está tristonha e friorenta;
Vai aquecer da prostituta ao colo
De libertino a fronte macilenta.
Vai escaldar esta alma morta e fria
Aos beijos do cognac qu’incendia.

Vai… Quando a alma s’enjoa deste mundo
Sempre descrente, acerbo d’ironia,
O cognac nos dá formosos mundos,
Castelos encantados de poesia.
E entre um gol de cognac e uma fumaça
Em ditoso delírio a vida passa.

Mas Jorge está mais lúgubre e sombrio
Que o mármore dum túm’lo mais calado,
Parece o seu olhar mais turvo e frio,
O sulco do sobrolho mais cavado…
Ai! Jorge… Vais unir ao libertino
A covardia infame do assassino…

E ele pouco esperou. Saudoso canto,
Que suspirava ao longe, aproximou-se,
E o canto era mais terno e mais sentido
Quo último som do cisne que finou-se;
Era um canto em que atroz pressentimento
Segredava ao mancebo o passamento.

Um momento depois um grito agudo
Triste uniu-se da noite à voz sombria…
Foi um grito somente e após ouviu-se
O convulso estertor de um’agonia…
A noite se estendeu como um sudário
Do cantor sobre o leito funerário.

Somente após à fulva luz de um raio
Veríeis uma virgem linda e nua…
Tremia de terror, ouvira o grito…
‘Stava pálida e branca como a lua,
E quando viu o amante — de amargura
Tornou-se a estátua pasma da loucura.

III. A LOUCA

Laura, onde vais? Sozinha a tais desoras
O vento há de gelar-te a branca pele.
Como tremes convulsa, e que sorriso!
Que chamas teu olhar ardente expele!
Laura, onde vais! Os pés nus, delicados,
Não maltrates nos seixos orvalhados.

Mulher, a quem procuras a estas horas?
Donzela, porque sais tão alta noite?
Não vês como aparecem mil fantasmas?
Não sentes da geada o frio açoite?
E das aves da noite o triste pio
Não faz por ti correr um calafrio? …

E ela seguia muda e taciturna,
Nas rochas machucando o pé divino.
Parecia sonâmbula perdida,
Autômato a seguir o seu destino.
Arfava o peito em ânsias ofegante,
Seu olhar era fixo e fascinante.

E seguia… e seguia… e nem ao menos
Parava um só momento no caminho;
Não sentia rasgarem-se-lhe as vestes
De incultos ervaçais no duro espinho.
O gênio da vingança é que a impelia…
Como o Judeu errante ela seguia…

……………………………………..

IV. A ENTREVISTA NO TÚMULO

Era um triste lugar. Entre ciprestes,
Que a custo balançavam a ramagem,
Onde só pra gemer tristes endechas
Passava regelada e fria a aragem,
Num esquife entreaberto está deitado
Um cadáver de moço abandonado.

E entregue às intempéries… sem amigos
Sem ter quem vá ali chorar um pranto.
Tu, que cantaste os sentimentos puros,
Qu’encontraste no mundo um doce encanto,
Tu dormes, sonhador, já macilento,
Entregue aos vermes vis, posto ao relento.

E esta fronte onde o gênio se inflamava,
Donde brotava ardente a poesia,
E os lábios que disseram sons cadentes,
Que ensinava-te alegre a fantasia,
São hoje como a lâmpada sem lume, —
Harpa sem cordas, — flores sem perfume.

Ninguém vem te chorar. Não, dentre as sombras
Uma sombra passou branca e ligeira,
Os ramos do arvoredo estremeceram,
Espantada voou a ave agoureira…
Quem perturba esta lúgubre morada?
Uma mulher… É Laura, a apaixonada.

E ela chegou-se rindo e soluçando
C’um rir entre medonho e entre formoso,
Seus lábios tressuavam de ironia
Ao mesmo tempo de inocente gozo.
Junto ao verde cadáver ajoelhou
E com os lábios ardentes o beijou.

Depois sentou-se triste junto ao esquife
E as passadas cantigas recordando,
Nos dedos frios, trêmulos, nervosos,
C’os cabelos do amante ia brincando;
Coa outra mão sobre o morto regelado
Pôs um longo punhal ensanguentado.

“Durmamos, disse ela, é meu amante!
Não vês? Eu tenho as mãos ensanguentadas.
Este sangue é de Jorge, é do assassino,
Durmamos: tuas cinzas ‘stão vingadas”.
… Então beijou-o louca em devaneio
E recostou-lhe a fronte no seu seio…

……………………………………..

V. OS DOIS CADÁVERES

E depois quando a aurora ergueu-se linda,
Viu a louca a embalar no seio o amante,
Cantando mil cantigas e o beijando
Sempre amorosa, triste e delirante…
Mas a lua co’os raios desmaiados
Viu dois mortos unidos, abraçados …

Análise do poema Pesadelo, de Castro Alves

“Pesadelo” é um poema em cinco partes que cria uma narrativa de amor, morte e loucura com imagens bastante vívidas e uma progressão dramática.

Na primeira parte, “O RENDEZ-VOUS”, somos apresentados a um cenário romântico onde Joseph, um trovador apaixonado, canta para sua amada. O ambiente descrito é envolvente e sensual, e a própria natureza parece participar do momento: “E as flores suspiravam molemente / Da brisa ao receber os doces beijos”. A descrição detalhada do encontro amoroso entre Joseph e sua amada cria uma atmosfera de tranquilidade e beleza, preparando o leitor para a tragédia que está por vir.

Na segunda parte, “O ASSASSINO”, a atmosfera muda completamente. A noite agora é escura e chuvosa, em sintonia com o estado sombrio do coração de Jorge, o libertino. A descrição do ambiente é sombria e cheia de presságios: “Uma noite era negro firmamento, / Monótona caía fria chuva”. Jorge, movido por ciúmes e desespero, comete um assassinato, interrompendo o canto apaixonado de Joseph. A transformação de Jorge de libertino em assassino é marcada por uma crescente escuridão em sua alma, marcado pelo ambiente tenebroso que o cerca.

A terceira parte, “A LOUCA”, foca em Laura, a amada de Joseph, que é consumida pela loucura após a morte do amante. Vagando descalça e sozinha pela noite, Laura parece uma sonâmbula, movida por uma força incontrolável de vingança e desespero. A sua jornada através da escuridão e da geada, sem parecer se importar com os ferimentos que recebeu, ilustra a profundidade de sua dor e loucura.

Em “A ENTREVISTA NO TÚMULO”, a quarta parte, encontramos Laura junto ao corpo de Joseph, em um cenário lúgubre e desolado. O poema descreve a decomposição do corpo do trovador, contrastando a beleza e a vitalidade de sua vida com a desolação da morte: “Tu dormes, sonhador, já macilento, / Entregue aos vermes vis, posto ao relento”. Laura, em um ato de desespero e vingança, deposita um punhal ensanguentado junto ao cadáver, revelando que matou Jorge para vingar a morte de Joseph. O seu beijo no cadáver do amante é um símbolo poderoso de amor e loucura entrelaçados.

Na última parte, “OS DOIS CADÁVERES”, o poema termina com uma imagem de trágica união: Laura, completamente consumida pela loucura, é encontrada morta ao lado do corpo de Joseph, simbolizando a união eterna dos amantes na morte no melhor estilo “Romeu e Julieta”. A visão dos dois cadáveres abraçados sob a luz da aurora traz uma sensação de paz melancólica, encerrando a narrativa de maneira comovente e trágica.

Pintura "O Beijo", de Francesco Hayez. Ilustrando o poema "Pesadelo", de Castro Alves
Pintura "O Beijo", de Francesco Hayez. Ilustrando o poema "Pesadelo", de Castro Alves
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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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