ENEM 2018 – Questão 10 da prova azul, primeiro dia

Quebranto

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo e me dou porrada
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
[…]
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno
começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
às vezes!…

CUTI. Negroesia. Belo Horizonte: Mazza, 2007 (fragmento).

Na literatura de temática negra produzida no Brasil, é recorrente a presença de elementos que traduzem experiências históricas de preconceito e violência. No poema, essa vivência revela que o eu lírico

  • A) incorpora seletivamente o discurso do seu opressor.
  • B) submete-se à discriminação como meio de fortalecimento.
  • C) engaja-se na denúncia do passado de opressão e injustiças.
  • D) sofre uma perda de identidade e de noção de pertencimento.
  • E) acredita esporadicamente na utopia de uma sociedade igualitária.

Resposta correta e explicação

A resposta correta é a letra “A”. O eu lírico, representado pelo próprio poeta Cuti, incorpora seletivamente o discurso do seu opressor. O poema revela o estado de contradição vivido pelo eu lírico, que ao mesmo tempo em que busca sua própria identidade e pertencimento, também se vê confrontado pelas imposições da sociedade opressora.

Ao se autodenominar como policial que se suspeita e se dá porrada, ou como porteiro que não se permite entrar, o eu lírico demonstra uma luta interna entre sua própria individualidade e a imposição do outro. Essa incorporação seletiva é uma forma de resistência, na qual o eu lírico busca se afirmar mesmo diante das adversidades.

É importante ressaltar que essa incorporação não se trata de uma submissão passiva, mas sim de uma estratégia de sobrevivência e de enfrentamento. Ao “exibir documentos” e mesmo assim ser alvo de violência, o eu lírico evidencia o absurdo de uma sociedade que recusa enxergá-lo por quem é e insiste em enquadrá-lo em estereótipos injustos.

Podemos interpretar a negação de se ver como uma renúncia a uma identidade que é subjugada e desvalorizada. Ao optar por não se enxergar, o eu lírico recusa-se a se identificar com o olhar opressor do outro. Entretanto, essa negação também demonstra o peso de carregar consigo as marcas da opressão e o constante confronto com uma sociedade que se recusa a reconhecer sua humanidade.

Desse modo, o eu lírico revela o quão complexa é a construção da identidade negra no contexto brasileiro. A experiência histórica de preconceito e violência é internalizada, levando a uma busca incessante por uma afirmação de si mesmo e enfrentando dilemas morais e sociais impostos.

Portanto, ao incorporar seletivamente o discurso do opressor, o eu lírico revela-se atento às nuances de poder e dominação presentes em sua trajetória de vida. Sem perder de vista sua própria realidade, o poema se coloca como uma denúncia, um ato de resistência frente ao passado de opressão e injustiças vivenciadas pela comunidade negra.

ENEM 2018 - Questão 10 da prova azul, primeiro dia

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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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