O poeta barroco Gregório de Matos, conhecido também como “Boca do Inferno” por sua linguagem ácida e crítica, explora em seu poema “Epílogos” as mazelas sociais e morais da Bahia de seu tempo. Com uma abordagem crua e direta, Matos denuncia a corrupção, a hipocrisia e a perda de valores essenciais para Soo bem-estar da sociedade.
Epílogos, de Gregório de Matos
Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
Quem a pôs neste rocrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.
Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.
Quais são seus doces objetos?… Pretos.
Tem outros bens mais maciços?… Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?… Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?… Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?… Guardas.
Quem as tem nos aposentos?… Sargentos.
Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
E que justiça a resguarda?… Bastarda.
É grátis distribuída?… Vendida.
Que tem, que a todos assusta?… Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
Que vai pela clerezia?… Simonia.
E pelos membros da Igreja?… Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?… Unha
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.
E nos frades há manqueiras?… Freiras.
Em que ocupam os serões?… Sermões.
Não se ocupam em disputas?… Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.
O açúcar já acabou?… Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?… Subiu.
Logo já convalesceu?… Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.
A Câmara não acode?… Não pode.
Pois não tem todo o poder?… Não quer.
É que o Governo a convence?… Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
Análise do poema “Epílogos”
Gregório de Matos utiliza a estrutura de perguntas e respostas para explorar, em “Epílogos”, a realidade social e moral da cidade da Bahia, que é o tema central do poema.
A cada estrofe, uma nova faceta da degradação é revelada. No início, a falta de verdade, honra e vergonha é posta como base para a corrupção que permeia a cidade. A crítica ao mercantilismo, à exploração e à ambição desmedida molda uma sociedade desprovida de princípios morais.
As relações sociais e a discriminação racial são expostas quando o poeta menciona “Pretos, mestiços, mulatos”, salientando o preconceito e a hierarquia que se estendem até a avaliação do ser humano como mercadoria.
Há também uma convocação irônica ao demônio (“demo”) – símbolo da máxima corrupção -, posicionando-o como o herdeiro dessa sociedade sem virtude.
A corrupção nas instituições é escancarada nos versos que citam os meirinhos, guardas e sargentos, destacando a exploração econômica em que os encarregados da lei estão envolvidos. A justiça é tachada de “bastarda” e “vendida”, refletindo a distorção do seu verdadeiro propósito.
Dentro da temática eclesiástica, a simonia (ato de vender bens espirituais ou cargos religiosos) é exposta como uma doença que ataca o clero, a inveja e a ganância também são apontadas como vícios que contaminam a Igreja naquele contexto social.
A crítica aos frades, que deveriam estar dedicados à sua vocação religiosa, mas estão perdidos em vícios e pecados, é realizada com uma linguagem direta e incisiva. Gregório de Matos usa palavras fortes, “freiras, sermões e putas”, para evidenciar a hipocrisia e o descompromisso moral.
O poema encerra com reflexões sobre a economia, fazendo uma analogia entre a saúde econômica da cidade e a de um doente, e sobre a incapacidade proposital da Câmara, sugerindo a negligência e a impotência dos órgãos de poder municipal frente aos problemas.
Características do Barroco no poema “Epílogos”
Este poema de Gregório de Matos tem praticamente quase todas as principais características do Barroco. Confira:
- Fusionismo: usa uma combinação de perguntas e respostas curtas para criar um contraste entre o ideal e a realidade corrupta da cidade, gerando uma intensidade dramática ao expor a discrepância entre os dois.
- Cultismo e Conceptismo: Gregório de Matos explora o conceptismo por meio de um jogo de palavras cheio de ironias e críticas sociais, usando um estilo linguístico ornamental e elaborado. As repetições, perguntas e respostas são formuladas de maneira retórica e lógica, destacando a corrupção e a decadência moral.
- Dualismos e Conflito Existencial: O poema fala sobre dualismos, como Verdade x Desonra e Honra x Vergonha. Além disso, há um claro conflito existencial sobre a realidade social e moral da cidade, com uma reflexão sobre o bem e o mal, e o certo e o errado.
- Figuras de Linguagem: As antíteses são frequentes, como nos versos que comparam valores morais ideais com a realidade corrompida da cidade. O uso de paradoxos também é evidente, como ao descrever uma “justiça” que é “bastarda, vendida, injusta”. Como pode a justiça ser tudo isso?
- Visão Pessimista: Talvez a característica mais nítida. O poema passa uma visão pessimista da sociedade baiana da época, criticando a corrupção, a injustiça e a decadência moral, mostrando uma realidade sombria e sem esperança alguma de mudança.
- Feísmo: O poema explora grotesco e o feio na descrição dos aspectos mais baixos e corruptos da sociedade, como a simonia, a inveja, as relações sexuais ilícitas.