Em “Cantai”, Auta de Souza não apenas explora a musicalidade do ato de cantar, mas também a eleva como uma metáfora para a celebração da vida, dos sonhos e das esperanças juvenis que, apesar das desilusões inevitáveis, persistem em florescer nos corações mais puros.
Cantai, de Auta de Souza
Ó vós, que guardais no seio
Com tanto amor e carinho,
– Com o mesmo doce receio
De um’ave que guarda o ninho:
As ilusões mais douradas
Que um’alma de moça encerra: –
Cantai as crenças nevadas
Que divinizam a terra;
Cantai a meiga harmonia
Das esperanças em flor,
Cantai a vida, a alegria,
Na lira santa do amor.
Cantai a vida, a alegria,
– Dizei-o nos vossos cantos –
É uma aurora querida
Que desabrocha sem prantos.
Expatriai a saudade,
– O espinho do coração –
Cantai a felicidade
De uma existência em botão.
É para vós a ventura,
A glória que o mundo tem…
Que vos importa a amargura
De um’alma que chora além?
Eu também irei cantando,
Como vós, meus pensamentos,
Vivendo sempre sonhando
Sem dores e sem tormentos.
E, já que não tenho amores,
E nem embalo esperanças…
Canto o perfume das flores,
Canto o riso das crianças.
Análise do poema “Cantai”
O poema “Cantai”, de Auta de Souza, desdobra-se em um convite à celebração das emoções e belezas simples da vida.
A primeira estrofe faz uma invocação aos detentores de sonhos e de purezas interiores, sugerindo que esses elementos sagrados sejam como o tesouro de uma ave — precioso e frágil.
Em seguida, Auta de Souza desenvolve o símbolo das “ilusões mais douradas” e das “crenças nevadas”, revelando o paradoxo entre o calor das esperanças jovens e a frieza das desilusões que assombram a existência. A intimação ao canto serve como um contraponto à natureza temporária dessas ilusões, transcendendo-as e imprimindo características divinas ao mundo terreno.
A poetisa transmite a ideia de que o canto não é meramente uma expressão auditiva, mas um relato da harmonia das expectativas (esperanças “em flor”) e da alegria essencial da vida, encerrados na “lira santa do amor”.
A Lira, instrumento de cordas muito presente na poesia e na música, é reverenciado como o mediador deste canto inspirador.
A repetição da homenagem ao canto da vida e da alegria, comparada a uma “aurora querida”, remete ao início de algo novo e límpido, desprovido de lágrimas e do peso do passado.
Expressões como “Expatriai a saudade” e “o espinho do coração” simbolizam a luta contra o sofrimento inerente à condição humana e reforçam a urgência de se cantar a “felicidade/De uma existência em botão”.
A poetisa finaliza com uma introspecção pessoal, alinhando-se aos convocados inicialmente, afirmando sua intenção de permanecer cantando apesar da ausência de amores e esperanças.
Em seu isolamento emocional, encontra consolo no “perfume das flores” e no “riso das crianças”, imaginando-se como parte de um universo alheio às desventuras.