Crônica “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos

A crônica “O amor acaba”, de Paulo Mendes Campos, é uma reflexão profunda (e melancólica) sobre a natureza efêmera e passageira do amor, que eventualmente acaba chegando ao fim.

Com um estilo lírico e detalhista, o autor explora cenários cotidianos e poéticos em que o amor chega ao fim, revelando como os sentimentos humanos podem ser frágeis e transitórios.

O amor acaba, de Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Análise da crônica “O amor acaba”, de Paulo Mendes Campos

A crônica “O amor acaba”, de Paulo Mendes Campos, traz uma reflexão sobre o fim do amor, mais especificamente sobre sua fragilidade e sobre como o seu fim é inevitável (na visão do autor). Através de metáforas e cenas do cotidiano, ele exemplifica como o amor pode perder sua força e intensidade.

A crônica começa com uma declaração bastante forte, que inclusive dá nome a ela: “O amor acaba”. A partir dessa simples afirmação, passamos por uma viagem interna, com o autor enumerando os diversos cenários onde o amor pode chegar ao fim. Como “numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova”, ou então “em cafés engordurados”. Tudo isso faz um contraste realista e doloroso com o amor idealizado, frequentemente retratado como sublime, divino e eterno, como na poesia romântica.

Pintura "Amor e Dor", também chamada "Vampiro", de Edvard Munch. Ilustrando a crônica "O Amor Acaba", de Paulo Mendes Campos

Pintura “Amor e Dor”, também chamada “Vampiro”, de Edvard Munch. Ilustrando a crônica “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos

A repetição da expressão “e acaba o amor” ao longo do texto, quase como um refrão, cria um ritmo hipnótico, ao mesmo tempo em que reforça a ideia de que todo relacionamento chega ao fim. O tom melancólico, e ao mesmo tempo lírico, retrata bem as nuances da desilusão amorosa. Em trechos como “no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados”, entendemos que o fim do amor não necessariamente acontece em grandes e trágicos eventos, e sim em pequenos gestos. Como no simples separar de mãos de um casal em uma sala de cinema.A metáfora das mãos que se desenlaçam “como dois polvos de solidão” é particularmente intensa, sugerindo que, mesmo antes do término oficial, os sinais de desconexão (e de enfraquecimento do amor) já estavam presentes.

Apesar do tom melancólico predominante, o autor não deixa de mencionar que o amor pode acabar “com doçura e esperança”, sugerindo que nem todos os términos são necessariamente trágicos. Afinal, há males que vêm para o bem, e o fechar de uma porta pode ser a abertura de novas. Esse é um toque de otimismo em meio à desilusão geral do texto, reconhecendo que o fim de um amor também pode abrir espaço para novos começos.

Prova disso é que a crônica termina com a reflexão de que “a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”. Um fechamento que destaca a natureza cíclica do amor, com altos e baixos e novo saltos, mostrando que, embora ele possa inevitavelmente acabar, há sempre a possibilidade de renascimento e renovação.

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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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