O poema “Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso”, de Stéphane Mallarmé é uma obra icônica que desafia as convenções tradicionais da poesia.
Mallarmé foi um poeta francês do século XIX, associado ao simbolismo, um movimento literário que valoriza as ideias de ambiguidade, complexidade e sugestão, em contraposição ao realismo e ao naturalismo que enfatizam uma representação direta da realidade.
“Um Lance de Dados” é uma obra que fala, em essência, sobre o acaso, a incerteza e o destino humano, utilizando uma forma inusitada para expressar suas ideias. Foi escrito em 1897 e publicado no mesmo ano na revista Cosmopolis, sendo publicada em livro pela primeira vez em 1914, dezesseis anos após a morte do autor.
Um Lance de Dados, de Stéphane Mallarmé
UM LANCE DE DADOS
JAMAIS
MESMO ATIRADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS
DO FUNDO DUM NAUFRÁGIO
PORQUE
o Abismo
Branco
se expõe
furioso
sob uma inclinação
desesperadamente plana
d’ asa
a sua
recaída prévia dum mal de se erguer no voo
cobrindo os impulsos
cortando rente os ímpetos
no âmago se resume
a sombra que se afunda nas profundas nessa alternativa vela
para adaptar
a tal envergadura
as suas horríveis profundas como o arcaboiço
duma construção
que balança dum lado
para o outro
O MESTRE
emerge
inferindo
dessa conflagração
que se
como uma ameaça
o único Número que não pode
hesita
cadáver descartado
em lugar
de jogar
como um velho maníaco
a partida
em nome das marés
um
naufrágio assim
livre dos antigos cálculos
esquecido o manobrar com a idade
outrora ele empunhava o leme
a seus pés
num horizonte unânime
prepara
se agita e se envolve
no punho que o ligará
ao destino dos ventos
ser um outro
Espírito
para o Lançar
na tempestade
e redobrar a divisão e passar altivo
pelo braço do segredo que encerra
invadiu o comandante
correndo pela barba submersa
vindo do homem
sem nau
insignificante
onde será vão
ancestralmente abrir ou não a mão
crispada
além duma cabeça inútil
legada em desaparição
a alguém ambíguo
imemorial ulterior demónio
nos seus lugares do nada
induz
o ancião a essa conjunção suprema com a probabilidade
o tal
da sombra pueril
acariciada e polida aparada e lavada
amaciada pela onda e afastada
dos ossos duros perdidos em bocejos
nascido
dum descuido
jogando o mar por antepassado ou o antepassado contra
o mar
numa sorte ociosa
São núpcias
da qual a ilusão é uma vela solta obcecada
com o fantasma dum gesto
que oscila até cair
na loucura
NÃO ABOLIRÁ
TAL COMO
Uma insinuação
ao silêncio
em algo próximo
esvoaça
simples
envolta em ironia
ou
precipitado
uivado
mistério
dum turbilhão hilariante e horrível
em redor do abismo
sem nele se fixar
nem fugir
a embalar todo o indício virgem
TAL COMO
perdida solitária pena
Salvo
quando o encontro ou o aflorar do toque
da meia-noite a deixa
imóvel
no veludo amarrotado por um riso sombrio
essa brancura rígida
irrisória
que se opõe ao céu
demasiado
para que não deixe marcas
exíguas
em qualquer
amargo príncipe de escolhos
e que disso se enfeita como de irresistível
heroísmo que sabe contido
pela sua curta e viril razão
em cólera
inquieto
expiatório e púbere
calado
A lúcida e senhorial crista
na fonte invisível
cintila
e depois sombreia
uma estatura gentil e tenebrosa
na sua torção de sereia
através de impacientes escamas
Riso
que
Se
de vertigem
de pé
o tempo
de esbofetear
bifurcadas
numa rocha
falsa mansão
evaporada na bruma
que impôs
fronteiras ao infinito
ERA
de origem estelar
Ou SERIA
pior
nem mais
nem menos
indiferentemente
mas tanto
O NÚMERO
SE EXISTISSE
diverso da alucinação esparsa da agonia
COMECASSE OU FINDASSE
ensucedor e não negado e preso quando aparecesse
enfim
através duma profusão ampliada e rara
SE CONTASSE
Como evidência da soma pouca uma
SE ILUMINASSE
O ACASO
Cai
a pena
rítmica suspensa do sinistro
para se afundar
na espuma original
recente onde explode o delírio até ao cimo
desvanecido
pela neutralidade idêntica do abismo
NADA
da memorável crise
em que teve lugar
o acontecimento
havido em vista de qualquer
resultado nulo
humano
TERÁ TIDO LUGAR
uma simples ascensão na direcção
da ausência
SENÃO O LUGAR
inferior marulhar como
para dispersar um acto vazio
abruptamente
e
através da mentira
decidir
a sua perdição
nestas paragens
do vago
em que toda a realidade se dissolve
EXCEPTO
a altitude
TALVEZ
tão longe como
o lugar
que com o além se funde
longe do interesse
que em geral se lhe assinala
segundo esta obliquidade ou aquela
delectividade
de fogos
para esse lugar que deve ser
o Setentrião também chamado Norte
UMA CONSTELAÇÃO
arrefece no olvido e no desuso
mesmo que ela enumere
em qualquer vaga e superior superfície
o choque sideral e sucessivo
do cálculo total em formação
velando
duvidando
brilhando e meditando
antes de se deter
em qualquer ponto derradeiro que o sagra
Todo o Pensamento produz um Lance de Dados
Análise do poema “Um Lance de Dados”
“Um Lance de Dados” não é um poema comum. A começar pela sua apresentação como um poema visual: a disposição das palavras na página, os espaços em branco, os diferentes tamanhos e tipos de fonte, tudo colabora para a criação do significado e do ritmo da leitura. A própria estruturação do texto, espalhada por vinte páginas, se torna uma metáfora para o conceito do acaso e do destino, elementos centrais na poética de Mallarmé.
A leitura do poema não é linear como um poema comum. Há painéis, “ilhas de significação”, que, lidas juntas, ajudam a formar o sentido. Assim sendo, o texto vai e vem, de um página para outro. O próprio título, “Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso“, marcado em negrito e em caixa alta, está espalhado ao longo do poema, originalmente nas páginas 1, 6 e 8.
O poeta curitibano Paulo Leminski, em seu ensaio Arte Inútil, Arte Livre?, refletindo sobre o conceito de “Arte pela Arte”, chega a dizer quer este poema de Mallarmé é o maior e último (no sentido de ser a forma final) exemplo de uma arte livre, sem nenhum moralismo, nem obrigação de agradar ou instruir:
“Significativamente, a evolução da poesia moderna, em fins do século XIX e inícios do XX, deriva diretamente desses cultores ‘arte pela arte’: a poesia moderna não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé. Isso se deve principalmente ao fato de que esses poetas, libertados dos lastros morais ou patrióticos, puderam fazer a poesia avançar tecnicamente, em termos de linguagem, até os extremos limites, de que o ‘Lance de Dados’ de Mallarmé é o paradigma último“.
O poema começa com a ideia de um lançamento de dados, jamais ocorrido, mesmo que enfrentando circunstâncias eternas. Aqui, Mallarmé sugere a ideia do acaso como uma força eterna e incontrolável.
No fundo de um naufrágio, o abismo se torna um personagem furioso, uma força da natureza que o ser humano tenta compreender, figurado pelo “MESTRE” (autorreferência ao autor ou ao leitor). Este tenta tirar alguma ordem ou sentido desse caos inerente à própria existência.
A água, símbolo de renovação e vida, também representa o acaso e a imprevisibilidade. “O mestre”, talvez referindo-se ao marujo ou ao próprio leitor na tentativa de interpretação, se debate em meio a conceitos de conflagração, ameaça, e como existe um constante jogo entre ações e acontecimentos predeterminados e o imponderável do destino humano.
Mallarmé explora a incerteza e a sensação de suspensão diante do desconhecido. O poema avança por meio de frases que sugerem movimento, queda e incerteza, em um fluxo que remete ao ato de jogar dados – o lance que depende do acaso para definir o destino.
Enquanto a poesia convencional busca a rima e a métrica como forma de organização e sentido, Mallarmé quebra essas expectativas. Ele emprega a tipografia e a posição visual das palavras para influenciar a interpretação do texto. Inverte a construção silábica do francês, desconsidera pontuações, usa diferentes fontes e tamanhos de letras etc.
Não há uma única interpretação para o poema, já que o leitor desempenha um papel ativo na construção de significado.
No fim das contas, a essência do poema parece encontrar-se na ideia da inutilidade da busca humana por certezas absolutas frente à vastidão do desconhecido – “NADA / da memorável crise […] TERÁ TIDO LUGAR”.
A poesia de Mallarmé é, portanto, uma reflexão sobre a condição humana, a busca por conhecimento e a inevitabilidade do acaso, desafiando o leitor a encontrar ordem na aparente desordem do texto.