O poema “Todas as cartas de amor são ridículas”, de Fernando Pessoa, mistura ironia e melancolia para falar sobre o amor e a forma como o expressamos. Assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos, um dos mais intensos e passionais de Pessoa, o poema reflete bem a liberdade formal do modernismo, sem rimas rígidas ou métrica fixa, e usa uma linguagem próxima da fala cotidiana.
À primeira vista, parece que o poema está zombando do romantismo exagerado das cartas de amor, tratando-as como algo bobo ou até constrangedor. Mas, conforme os versos avançam, a intenção fica mais clara: a ridicularização não é uma crítica ácida, e sim uma reflexão nostálgica. O eu-lírico percebe que o verdadeiro ridículo não está em escrever cartas apaixonadas, mas sim em nunca ter amado o suficiente para sentir essa necessidade. No fim das contas, ele sente falta desse tempo e reconhece que a intensidade do amor justifica qualquer excesso de sentimentalismo.
Todas as Cartas de Amor São Ridículas, de Fernando Pessoa
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Estrutura e Estilo do Poema
O poema segue o estilo modernista, com versos livres, sem rimas certinhas ou um ritmo fixo. Isso dá uma sensação mais natural e espontânea, quase como se fosse um desabafo. Além disso, o tom coloquial faz com que a leitura flua de maneira leve e próxima do leitor, como se fosse uma conversa sobre o amor e suas contradições.
O que mais chama atenção no poema é a repetição da palavra “ridículo”, que aparece como um carimbo ao longo dos versos. No começo, parece que o eu-lírico está debochando do romantismo exagerado das cartas de amor. Mas, conforme o poema avança, percebemos que a ironia esconde algo mais profundo: ele não está exatamente criticando o sentimentalismo, mas sim sentindo falta dele. O jogo de contrastes é o grande charme do poema—ele ri das cartas melosas, mas também sente saudade do tempo em que escrevia esse tipo de coisa sem pensar duas vezes. No fim das contas, o que é realmente ridículo? As cartas ou perder a capacidade de amar dessa forma?
Um detalhe curioso é que Fernando Pessoa não falava apenas sobre cartas de amor — ele realmente as escreveu. Durante seu relacionamento com Ofélia Queiroz, a única namorada de quem se tem registro, ele trocou inúmeras cartas recheadas de carinho, apelidos doces e até um certo tom infantil.
Análise dos Versos
A ideia da “ridicularização” do amor
O poema já começa com uma afirmação direta e provocativa:
Todas as cartas de amor são ridículas.
Dizer isso pode parecer um ataque ao romantismo exagerado, como se o eu-lírico estivesse criticando a melosidade e o sentimentalismo dessas cartas. Mas, conforme seguimos na leitura, percebemos que não é bem assim. Ele não está zombando do amor, e sim reconhecendo que expressar sentimentos dessa forma sempre parece exagerado—mas é inevitável quando se está apaixonado.
O envolvimento pessoal do eu-lírico
Logo depois, o eu-lírico faz uma revelação que muda o tom da fala:
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas.
Ou seja, ele próprio já se viu nesse papel. E isso muda tudo. Agora, em vez de simplesmente criticar, ele assume que foi parte dessa “ridicularidade”. Esse detalhe dá mais profundidade ao poema: ele não está rindo das cartas dos outros, mas também das suas próprias, numa espécie de autoironia misturada com nostalgia.
A mensagem aqui é clara: o amor, por sua própria natureza, nos faz dizer e escrever coisas que podem parecer exageradas depois. Mas isso faz parte da experiência—afinal, quem nunca disse algo extremamente apaixonado e depois achou um pouco brega?
A mudança de perspectiva
O ponto de virada do poema vem com a seguinte reflexão:
Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.
Aqui, tudo se inverte. Se antes parecia que o eu-lírico estava debochando do amor exagerado, agora ele deixa claro que o verdadeiro ridículo não é escrever cartas melosas, mas nunca ter amado o bastante para sentir essa vontade.
O que parecia ser uma crítica ao sentimentalismo se transforma em uma defesa do amor. Em outras palavras: pode até ser “ridículo” escrever cartas de amor, mas muito pior é nunca ter se permitido sentir algo tão intenso a ponto de escrever uma.
A nostalgia do eu-lírico
Nos versos seguintes, surge um novo sentimento: a saudade. O eu-lírico lembra da época em que escrevia essas cartas sem pensar se eram ridículas ou não, apenas movido pelo que sentia.
Quem me dera no tempo em que escrevia sem dar por isso cartas de amor ridículas.
Agora, ele olha para esse passado com uma mistura de carinho e melancolia. O tom do poema muda novamente: antes ele parecia debochar, depois refletia, e agora expressa um desejo de voltar àquele tempo. Isso mostra que, apesar de ver o amor como algo “ridículo”, ele sente falta dessa fase em que se permitia ser assim.
A crítica já não é mais às cartas ou ao amor exagerado, mas sim à perda da espontaneidade ao longo do tempo. Talvez o verdadeiro problema não seja escrever cartas de amor, mas perder a coragem de viver esse amor plenamente.
Conclusão e reflexão final
O poema termina reforçando sua mensagem principal:
Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículas.
Aqui, o eu-lírico reconhece que tudo o que é intenso demais, seja no jeito de falar ou de sentir, pode soar “ridículo” para quem olha de fora. Mas isso não significa que não seja real. Pelo contrário, os sentimentos exagerados são parte essencial da experiência humana—e o amor, em especial, não combina com racionalidade fria.
O poema, que começou parecendo uma crítica ao amor romântico, na verdade termina sendo uma celebração dele. Amar é perder um pouco da razão, falar coisas grandiosas, escrever cartas que mais tarde podem parecer melosas—e isso não tem nada de errado. O verdadeiro ridículo seria nunca ter vivido isso.