“Sentimento do Mundo”, um dos mais famosos de Carlos Drummond de Andrade, é um poema que reflete sobre a angústia existencial e a sensação de impotência diante das grandes crises da humanidade.
Com uma linguagem densa e melancólica, o poeta transmite um profundo mal-estar em relação ao mundo e a sua própria existência, dialogando com o contexto da Primeira e Segunda Guerra Mundial, das quais Drummond era contemporâneo, expressando o desalento e a confusão de um tempo marcado pela destruição e pela falta de sentido no mundo e na humanidade.
Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Análise do poema Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade
O poema “Sentimento do Mundo” revela um forte pessimismo e uma visão quase apocalíptica da realidade. Desde o início, o eu lírico confessa a sua limitação (“Tenho apenas duas mãos”) diante da vastidão e da complexidade do sofrimento humano (“e o sentimento do mundo”). A imagem de “estar cheio de escravos” sugere que o sujeito está sobrecarregado por pressões internas e externas, talvez aludindo à opressão das próprias memórias, das responsabilidades ou das angústias que o dominam.
A ideia de escorrimento das lembranças (“minhas lembranças escorrem”) pode simbolizar o sentimento de perda, a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de reter o passado. O corpo do eu lírico, que “transige na confluência do amor”, sugere uma entrega, talvez involuntária, a forças maiores do que ele, onde até o amor parece ser uma mistura de vulnerabilidade e conformidade.
Ao falar de um “céu morto e saqueado” quando se levantar, o poeta introduz uma imagem de ruína e desolação. O céu, tradicionalmente visto como um símbolo de esperança ou divindade, aqui aparece devastado. Isso parece refletir a perda da espiritualidade ou da fé num mundo melhor. A morte mencionada, tanto do próprio eu-lírico quanto dos seus desejos, acentua esse sentimento de aniquilação total, como se o futuro fosse estéril e sem vida.
A ausência de aviso dos “camaradas” sobre a guerra sugere uma sensação de traição ou de estar completamente alheio a eventos que afetam profundamente a humanidade. Essa guerra, que pode ser entendida literalmente (como a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial) ou metaforicamente (uma guerra interna ou existencial, dele consigo mesmo), destaca a alienação do sujeito. Ele se sente deslocado e perdido, “disperso”, como alguém fora de lugar e fora do tempo, sem identificação com as fronteiras ou com os acontecimentos históricos.
O pedido de perdão (“humildemente vos peço que me perdoeis”) parece brotar da consciência dessa alienação. O eu lírico sente-se culpado, talvez por sua impotência ou por sua incapacidade de participar ativamente na luta coletiva. Ele parece pedir perdão à humanidade ou ao próprio universo por essa desconexão e fraqueza.
Na estrofe final, a solidão se aprofunda. Enquanto os corpos dos companheiros passam, ele permanece, preso a recordações de figuras marginais (o sineiro, a viúva, o microscopista). Essas figuras evocam uma humanidade comum, mas, ao mesmo tempo, parecem distantes e irreais, desaparecendo no amanhecer — um amanhecer que, ironicamente, é “mais noite que a noite”. Aqui, o amanhecer, que costuma simbolizar renovação e esperança, é subvertido para significar o contrário: a continuidade da escuridão e do desespero.
Drummond usa muito bem esse contraste entre luz e escuridão, esperança e desesperança, para intensificar a sensação de que o mundo está mergulhado em uma crise profunda, na qual até o amanhecer, que deveria trazer alívio, apenas prolonga a noite existencial.