Escrito entre 1928 e 1940 por Mikhail Bulgákov, O Mestre e Margarida é um dos romances mais intrigantes e enigmáticos da literatura russa. Sua trajetória foi marcada por desafios: censurado e modificado pelas autoridades soviéticas, o livro só foi publicado em 1966, mais de 25 anos após a morte do autor.
Misturando fantasia, sátira política e filosofia, a obra desafia classificações e se reinventa a cada leitura. Traz uma crítica mordaz à hipocrisia e à repressão e acabou se tornando não apenas um clássico literário, mas um poderoso símbolo da resistência artística e da luta pela liberdade de expressão.
Contexto Histórico e Político
Entre as décadas de 1920 e 1940, a União Soviética passou por um período de forte controle estatal sobre a produção artística e literária, o que impôs desafios significativos aos escritores. Mikhail Bulgákov, que começou sua carreira como médico antes de se dedicar à literatura, enfrentou dificuldades para publicar seus trabalhos, muitos dos quais foram censurados. Por exemplo, sua peça Os Dias dos Turbin (1926) fez grande sucesso, mas acabou sendo retirada de cartaz devido à pressão política. Essa polêmica peça retrata a Revolução Russa através dos olhos de uma família burguesa e antibolchevique de Kiev.
Diante desse cenário, em 1930, Bulgákov chegou a escrever uma carta a Stalin pedindo permissão para sair da União Soviética, mas teve o pedido negado. No entanto, recebeu um telefonema inesperado do próprio líder soviético, que sugeriu que ele trabalhasse no Teatro de Arte de Moscou. Apesar dessa oportunidade, sua liberdade criativa continuou limitada.
Esse ambiente de restrição e vigilância influenciou diretamente O Mestre e Margarida, tornando o romance uma reflexão profunda sobre a censura, o papel do artista e os dilemas morais de sua época.
Enredo e Estrutura do Romance
A narrativa de O Mestre e Margarida acontece em dois planos paralelos, que se complementam e dialogam entre si.
Moscou dos anos 1930
Na capital soviética, Woland, uma figura enigmática que representa o diabo, chega acompanhado por sua comitiva sobrenatural – incluindo o sarcástico gato falante Behemoth e o astuto Koroviev. Eles provocam uma série de acontecimentos caóticos que expõem a hipocrisia, a ganância e os excessos da elite literária e burocrática da cidade.
Um dos momentos mais marcantes é o espetáculo de “magia negra” no Teatro de Variedades, onde Woland revela o oportunismo e a corrupção dos espectadores, distribuindo dinheiro e roupas luxuosas que depois desaparece. O rastro de confusão deixado por sua comitiva leva diversos personagens a situações surreais, muitas vezes culminando em internações psiquiátricas ou desaparecimentos misteriosos.
Jerusalém Antiga
Em um tom mais sombrio e filosófico, a segunda trama acompanha Pôncio Pilatos nos momentos que antecedem a condenação de Yeshua Ha-Notsri (Jesus Cristo). Pilatos, inicialmente apresentado como um líder frio e pragmático, é atormentado por uma forte dor de cabeça e por um incômodo ainda maior: a consciência de que está condenando um homem inocente.
O diálogo entre Pilatos e Yeshua sugere uma crítica ao poder autoritário e à covardia diante da verdade. A história se desenvolve como um romance dentro do romance, escrito pelo personagem Mestre, um autor perseguido e rejeitado que encontra na narrativa histórica uma forma de expressar sua própria angústia e isolamento. Em dado momento, a trajetória de Mestre e de Woland se juntam, muito graças à figura de Margarida, sua amante.
Personagens Principais
- O Mestre: Um escritor brilhante, mas atormentado, que dedica sua vida a um romance sobre Pôncio Pilatos. Perseguido pela censura e rejeitado pela elite literária, ele cai em desespero e queima seu manuscrito, acreditando que seu trabalho jamais verá a luz do dia. Sua trajetória reflete a angústia de muitos escritores soviéticos que lutavam contra a repressão cultural. Apesar de sua dor, ele mantém uma profunda conexão com Margarida, sua única fonte de esperança.
- Margarida: Mais do que a amada do Mestre, Margarida é uma personagem que encarna paixão, coragem e sacrifício. Presa a um casamento sem amor, ela encontra no Mestre um propósito maior e, quando ele desaparece, está disposta a tudo para reencontrá-lo. Ao aceitar um pacto com Woland, torna-se bruxa por uma noite e protagoniza cenas icônicas, como seu voo sobre Moscou em uma vassoura e sua participação no Baile de Satã, uma clara referência à Noite de Walpurgis de Fausto. Sua jornada não é apenas por amor, mas também por liberdade e realização pessoal.
- Woland: A figura do diabo, apresentada aqui de forma enigmática e sofisticada. Longe de ser uma personificação do mal absoluto, Woland se mostra um observador implacável da humanidade, expondo a hipocrisia, a cobiça e a covardia dos homens. Com ironia e um humor afiado, ele coloca Moscou de pernas para o ar, revelando verdades desconfortáveis e proporcionando tanto punições quanto recompensas inesperadas.
- Behemoth, Koroviev e Azazello: A comitiva sobrenatural de Woland, cada um com características e funções distintas:
- Behemoth: Um gato falante, sarcástico e anárquico, que adora vodka, xadrez e travessuras. Representa o caos e o absurdo.
- Koroviev: Um ex-cantor de coral transformado em assistente demoníaco. Sempre vestido de maneira espalhafatosa, tem um humor cínico e um dom para enganar os desavisados.
- Azazello: O mais violento e pragmático do grupo. Com sua aparência assustadora e seu talento para resolver problemas à força, ele é o responsável por convencer Margarida a aceitar o pacto e entrar no universo de Woland.
Eventos-chave
O show de magia no Teatro de Variedades
Em uma das cenas mais icônicas e satíricas do romance, Woland e sua comitiva realizam um espetáculo de magia no Teatro de Variedades. A princípio, a plateia se encanta com os truques: dinheiro chove do teto, roupas luxuosas são distribuídas às mulheres, e cabeças são arrancadas e recolocadas com aparente facilidade.
No entanto, logo tudo se transforma em caos – o dinheiro desaparece, as roupas viram farrapos e os participantes são humilhados publicamente. O episódio expõe de forma brilhante a hipocrisia, a vaidade e a corrupção da elite soviética, mostrando como a ganância pode cegar até os mais céticos.
A transformação de Margarida
Disposta a qualquer sacrifício para reencontrar o Mestre, que a abandonou após a péssima recepção de seu romance, Margarida aceita a oferta de Azazello e se transforma em uma bruxa. Passando por uma espécie de ritual de iniciação, ela voa nua sobre Moscou, em uma cena de intensa liberdade e simbolismo, onde deixa para trás sua vida burguesa e assume seu verdadeiro poder.
Essa transformação culmina em sua participação no lendário Baile de Satã, onde, como anfitriã, recebe almas condenadas em um evento grotesco e extravagante. Sua jornada, no entanto, não é apenas um ato de amor, mas também de autodescoberta e desafio às normas impostas pela sociedade
O destino do Mestre e Margarida
Após tantas provações, Woland concede ao casal um destino especial: uma existência em uma espécie de limbo tranquilo, longe das dores e injustiças do mundo real. Diferente da tradicional ideia de céu ou inferno, o final do romance não traz condenação nem redenção absoluta, mas sim um espaço de paz e eternidade para os protagonistas.
Enquanto isso, Pilatos, que havia ficado preso ao seu ato de covardia, finalmente recebe a chance de se redimir, encerrando a trama com uma reflexão sobre culpa, destino e liberdade.
Temas Centrais e Interpretações
- Crítica à sociedade soviética: Embora O Mestre e Margarida não mencione diretamente o regime stalinista, sua sátira à burocracia, à censura e ao oportunismo da elite literária e política soviética é evidente. A associação literária Massolit, que reúne escritores bajuladores e privilegiados, representa o controle estatal sobre a cultura e a submissão dos artistas ao regime. A maneira como Woland e sua comitiva desmascaram a corrupção e a hipocrisia dos cidadãos de Moscou – desde as fraudes nos apartamentos até os subornos e traições – reflete uma sociedade onde as aparências importam mais do que a ética.
- Religião e espiritualidade: A obra oferece uma visão incomum de Jesus e do diabo. Yeshua Ha-Notsri, a versão de Bulgákov para Jesus, é um filósofo pacífico, sem poderes divinos, que acredita no bem das pessoas, mas acaba sendo condenado por Pôncio Pilatos. Ao mesmo tempo, Woland, que representa o diabo, não age como um vilão absoluto, mas como um agente da justiça cósmica, recompensando os bons e punindo os maus. O embate entre ateísmo e fé permeia toda a narrativa, questionando não apenas a religiosidade imposta pelo Estado soviético, mas também a verdadeira essência do bem e do mal.
- Amor e liberdade: O relacionamento entre o Mestre e Margarida vai além da paixão romântica: representa a luta pela liberdade criativa e emocional. O Mestre, rejeitado e aniquilado pelo sistema literário, encontra em Margarida sua única aliada e fonte de esperança. Margarida, por sua vez, rompe com sua vida convencional para salvar o homem que ama, aceitando o pacto com Woland. Sua transformação em bruxa simboliza a libertação da opressão social e do papel passivo imposto às mulheres. O casal representa a resistência contra um mundo que tenta apagar os que ousam sonhar e criar.
- Sobrenatural e cômico: O romance mistura fantasia e humor ácido para revelar verdades desconfortáveis. A comitiva de Woland, com seu gato falante Behemoth e o excêntrico Koroviev, transforma a trama em uma espécie de espetáculo surreal, onde a lógica se dissolve e a sátira ganha força. Essa abordagem permite que Bulgákov critique abertamente a sociedade sem recorrer ao realismo direto, escapando assim da censura de sua época. O absurdo se torna uma ferramenta poderosa para expor a irracionalidade do mundo burocrático e a fragilidade do ser humano diante do poder.
Impacto e Legado
Inicialmente censurado, O Mestre e Margarida só foi publicado integralmente anos após a morte de Bulgákov, mas rapidamente se tornou um fenômeno literário. Sua crítica velada, o humor mordaz e a fusão de fantasia e realidade conquistaram leitores dentro e fora da Rússia, garantindo-lhe um lugar entre os maiores romances do século XX. Hoje, a obra é amplamente estudada e adaptada, mantendo-se viva por meio do cinema, do teatro e da música.
Entre suas influências culturais mais marcantes está a música Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, cuja letra foi diretamente inspirada em Woland e sua jornada por Moscou. Além disso, a história tem sido tema de diversas adaptações cinematográficas, séries, animações e peças teatrais, refletindo seu impacto contínuo na cultura global.
A icônica frase “Os manuscritos não queimam”, dita por Woland ao Mestre, tornou-se um poderoso símbolo da resiliência da arte e da liberdade de expressão. Representa a ideia de que, mesmo diante da repressão e da censura, as ideias verdadeiramente revolucionárias não podem ser destruídas.
Mais de 80 anos após sua criação, O Mestre e Margarida continua a ressoar como uma crítica afiada às injustiças, ao autoritarismo e à hipocrisia social. Sua mistura única de sátira, filosofia e fantasia mantém o romance atual e fascinante, provando que algumas histórias são, de fato, imortais.