Freud: A Conquista do Fogo pelo olhar da Psicanálise

A psicanálise é uma ferramenta útil para desvendar enigmas profundos da mente humana. Sigmund Freud, porém, não aplicou suas reflexões psicanalíticas apenas ao funcionamento interno do psiquismo humano, mas também a fenômenos culturais e históricos, entre eles muitos textos da mitologia.

Uma análise particularmente intrigante de Freud se debruça sobre a conquista do fogo pelo homem primitivo, utilizando o mito de Prometeu e da luta de Hércules com a Hidra de Lerna como chave interpretativa.

As reflexões de Freud sobre a Conquista do Fogo

Freud sugere que a capacidade do homem primitivo de dominar o fogo só foi possível através de uma renúncia significativa: a do prazer, possivelmente de natureza homossexual, associado à extinção do fogo pela urina.

Esta hipótese encontra respaldo na proibição observada em diversas culturas, inclusive entre os Mongóis, de não urinar nas brasas ou no fogo, já que ainda poderiam ser utilizadas . Para Freud, essa renúncia marca o início de uma trajetória complexa nas relações humanas com o poder e com a cultura.

“Acho que minha hipótese de que a precondição para se apoderar do fogo foi a renúncia ao prazer — de matiz homossexual — de apagá-lo com o jato de urina pode ser confirmada pela interpretação do mito grego de Prometeu, desde que levemos em conta as previsíveis distorções na passagem do fato para conteúdo do mito”.

A interpretação freudiana vê a chama do fogo como um símbolo fálico, ou seja, com o formato de um pênis, devido à sua forma, calor e movimento, evocativos da excitação sexual. “O calor que o fogo irradia evoca a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual, e a chama lembra, na forma e nos movimentos, o falo em ação“. Há, no simples ato de apagar o fogo com a urina, uma relação de poder. Se a chama simboliza um falo, Freud ressalta que “a tentativa de apagar o fogo com a própria urina significava, para o homem primitivo, uma prazerosa luta com outro falo“.

Freud à direita, com homens primitivos criando uma fogueira ao fundo.

Essa associação do fogo com órgão genital masculino não está tão distante das percepções ancestrais sobre o fogo, simbolizado mitologicamente e percebido pelos antigos como uma manifestação de poder e vitalidade. Uma expressão muito comum do nosso idioma, aliás, ressalta ainda mais esse caráter sexual: “lambido pelo fogo”, com o fogo sendo representado como uma língua.

Freud encontra paralelos entre o manejo do fogo e as funções fisiológicas e sexuais do corpo humano, indicando uma interação simbólica entre cultura, natureza e psiquismo. E os mitos gregos reforçam essas hipóteses.

O Mito de Prometeu

No centro da análise de Freud está o mito de Prometeu, um titã que rouba o fogo dos deuses e o entrega à humanidade, escondido em uma vara oca, representando, segundo Freud, uma inversão simbólica do pênis. Para a teoria freudiana, os objetos nos sonhos muitas vezes manifestam-se de forma contrária, com os laços sendo invertidos e, consequentemente, escondendo o verdadeiro sentido.

Para Freud, a aquisição do fogo, vista como um ato de sacrilégio ou crime, expressa a tensão entre os desejos de origem instintiva e a ordem cultural ou divina.

“Mas por que a aquisição do fogo está inseparavelmente ligada à ideia de um crime? Quem é o fraudado, o prejudicado? Na lenda narrada por Hesíodo há uma resposta direta, pois numa outra história, não diretamente relacionada ao fogo, Prometeu engana Zeus e favorece os homens na preparação do sacrifício. Portanto, os deuses são fraudados! É notório que o mito concede aos deuses a satisfação de todos os desejos a que o ser humano tem de renunciar, como sabemos do incesto. Diríamos, em linguagem psicanalítica, que a vida instintual, o Id, é o deus enganado com a renúncia à extinção do fogo, um desejo humano é transformado em privilégio divino na lenda. Mas nela a divindade nada possui do caráter de um Super-eu, é ainda representante da poderosa vida instintual.”

Prometeu Acorrentado, pintura de Frans Snyders e Peter Paul Rubens

Prometeu Acorrentado, pintura de Frans Snyders e Peter Paul Rubens

O castigo de Prometeu, condenado a ter seu fígado eternamente devorado por um abutre até que viria a ser resgatado por Hércules, é a punição pela ousadia de quebrar os limites impostos pelos deuses, o que simboliza a nossa renúncia de desejos em prol da cultura e da vida em sociedade. E o fígado não é uma escolha ao acaso: para os antigos, era justamente no fígado que as paixões e os desejos nasciam.

“Para os antigos, esse órgão era a sede de todos os desejos e paixões; de modo que uma punição como a de Prometeu era a mais correta para um criminoso arrastado pelos impulsos,* que cometera uma ofensa impelido por maus apetites”.

No mito, o fígado devorado regenera-se a cada dia, assim como o desejo sexual, que volta a crescer após sua satisfação. É uma representação da constante luta entre satisfazer o apetite sexual e ser repreendido pela cultura.

Héracles e a Hidra

A figura de Héracles (Hércules) combatendo a Hidra de Lerna, um monstro aquático que é estranhamente vencido pelo fogo, complementa a interpretação de Freud sobre a dinâmica entre fogo e água, instinto e cultura.

Também partindo da ideia da inversão dos sonhos, vemos novamente a ideia da água apagando o fogo — como no ato de se urinar sobre as chamas. A cabeça imortal, que Héracles destrói com fogo, seria novamente uma representação do falo, e a destruição, em si, uma castração.

Hercules e a Hidra (1634), pintura de Francisco de Zurbarán

Hercules e a Hidra (1634), pintura de Francisco de Zurbarán

Desse ponto, Freud puxa outra reflexão: sobre como o órgão sexual masculino alterna entre dois opostos. Quando o órgão está no estado de excitação, o ato de urinar é impossível. Quando ele é usado para expelir a água do corpo, os laços com a função sexual desaparecem. Ou seja, “a oposição entre as duas funções poderia nos levar a dizer que o homem apaga seu fogo com sua própria água“.

Referência

FREUD, Sigmund. “A Conquista do Fogo”. In: FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936); tradução Paulo César de Souza — São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

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Alexandre Garcia Peres

Criador do site Literatura Online e Redator, Editor e Analista de SEO com três anos de experiência. Formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com foco em literatura e TCC em Paulo Leminski. Fez um ano de especialização em Teoria da Literatura e sua maior área de interesse é a poesia brasileira, principalmente os poetas da segunda e terceira geração do romantismo.

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