“Feliz”, de Auta de Souza, explora com delicadeza e profundidade a temática da felicidade e como ela é passageira. A poetisa, que viveu entre 1876 e 1901, e cuja obra é marcada pela sensibilidade e melancolia, reflete nesse poema questões universais do ser humano através de imagens e metáforas ricas.
Feliz, de Auta de Souza
Dizes-me que a ventura te foi dada
E contente tu’alma jamais chora:
Vives sorrindo à luz de uma alvorada
E a noite para ti é cor da aurora…
Não creio nessa dita, me perdoa.
Ninguém na terra pode ser feliz.
Até o sino que na torre soa
Tem sua dor, nem sempre ele bem-diz.
Longe… distante… Pelo azul chalrando,
A modular uns hinos tão suaves,
Pássaros meigos lá se vão cantando…
Mas tu crês na ventura d’essas aves?
Repara bem naquela que ficou
Pousada lá no cimo da aroeira:
Ela chora, coitada, pois deixou
Muito longe perdida a companheira.
Aves da terra, em tímidos adejos,
Também alegres como as rolas mansas,
Rostos corados, recendendo beijos,
Correm cantando grupos de crianças.
E enquanto passa, em revoada louca,
Este dourado batalhão de arcanjos,
Eu quero ouvir-te da risonha boca
Se é eterna a ventura desses anjos.
A moça também sofre… Um áureo cofre
Guarda-lhe os prantos e o martírio duro,
E, de todas, aquela que mais sofre
É a que tem o coração mais puro.
Jardim – 1893
Análise do poema “Feliz”
O poema “Feliz”, de Auta de Souza, inicia com um fala direta ao leitor, ou possivelmente a um interlocutor imaginário, sobre a possibilidade de alguém ser genuinamente feliz. Será que alguém realmente chega ao estado de “felicidade verdadeira e plena”? A autora acredita que não, ideia que ela desenvolve ao longo do poema por meio de diferentes imagens e cenários.
A primeira estrofe fala de uma pessoa que alega viver num estado de alegria eterna, o que a voz poética responde com descrença, dizendo ser impossível. Um exemplo de que nada é totalmente feliz é a dor inerente à existência, exemplificada pelo sino da igreja que, apesar de simbolizar anúncios e celebrações, também carrega sua própria dor.
A partir da segunda estrofe, o eu-lírico traz reflexões sobre a tristeza da própria natureza, inicialmente com pássaros que, apesar de sua beleza e doce canto, não estão livres do sofrimento. A autora procura desfazer a ideia romântica de que o estado natural dos seres é a alegria, apontando para a solidão de uma ave que perdeu sua companheira.
O poema avança com a imagem de crianças correndo e cantando, potencial símbolo de inocência e júbilo. No entanto, mesmo esses “anjos”, como ela chama, são questionados sobre a eternidade de sua felicidade, já que o sofrimento pode estar presente até mesmo mesmo nas fases mais tranquilas da vida.
Por fim, Auta de Souza fala especificamente da figura feminina, relacionando beleza e pureza ao sofrimento secreto. O “áureo cofre” que guarda suas dores é tanto uma metáfora para a intimidade emocional quanto um símbolo da opressão feminina, já que as mulheres muitas vezes são obrigadas a “guardar suas mágoas” e forçadas a apresentar um semblante de alegria.