No coração da obra “Don Juan”, o dramaturgo francês Molière cria uma trama que vai além de meras aventuras galantes (frequentemente associadas ao lendário personagem “Don Juan”, já visitado por outros autores, como Lord Byron) para tocar num tema bastante delicado e, por vezes, incômodo: a hipocrisia social.
O protagonista, Don Juan, não é apenas um libertino, mas também um ótimo exemplo da hipocrisia que permeava a sociedade da época. Molière, bastante afiado, cria um personagem que, consciente de sua conduta questionável, decide se esconder atrás da capa de virtude como uma estratégia para manipular e beneficiar-se ainda mais às custas das pessoas ao seu redor.
Don Juan afirma: “Se afirmei querer corrigir minha conduta e passar a viver uma vida exemplar, você devia ter percebido que isso é apenas um projeto político e, como tal, um estratagema para iludir os tolos“. E vai além, deixando claro que “disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas está na moda. E todos os vícios na moda são virtudes.“
O mais instigante é que Don Juan nem tenta esconder sua descrença na honestidade e na virtude, admitindo abertamente ao seu serviçal, Sganarelle. Para Don Juan, a hipocrisia é uma ferramenta “útil” e até “elegante”, permitindo que ele escape das consequências de suas ações, e julgue e critique as outras pessoas, enquanto se mantém seguro sob a proteção de uma sociedade igualmente hipócrita.
Essa crítica de Molière aos “cidadãos de bem” de sua época aponta para a valorização superficial da aparência de moralidade e virtude, deixando a autenticidade e a ética verdadeira em segundo plano. Algo que com certeza podemos relacionar aos dias de hoje.
A contemporaneidade da crítica: os cidadãos de bem de hoje em dia
A relevância da crítica social de Molière em relação à hipocrisia não se perdeu com o passar dos séculos. Ao contrário, o que o dramaturgo francês capturou em “Don Juan” parece, infelizmente, fazer muito sentido quando olhamos para os dias de hoje.
Hoje em dia, os chamados “cidadãos de bem”, assim como os criticados por Molière, frequentemente vestem uma máscara de virtude e moralidade, mas apenas para ocultar práticas questionáveis ou mesmo para ganhar vantagem em situações sociais e políticas. Desde o eleitor, que aponta corrupção nos candidatos políticos alheios enquanto ignora os atos corruptos do próprio candidato, até o político, que defende punições severas para criminosos menores enquanto ele próprio comete crimes do “colarinho branco”.
O mais curioso é que a tradução de Millôr Fernandes, profeticamente, até mesmo inclui o termo “cidadão de bem”. Don Juan diz abertamente: “O personagem do homem de bem é o mais fácil de interpretar em nossos dias. Qualquer hipócrita o representa com razoável perícia”.
Esses indivíduos, que se apressam em apontar os erros e falhas alheios, muitas vezes se esquecem de olhar para suas próprias imperfeições, escondendo-se por trás de uma aparente (mas apenas aparente) integridade moral. A hipocrisia, assim como na época de Molière, serve como um mecanismo de defesa ou uma estratégia para criticar e julgar os outros, protegendo-se em uma aura de falsa superioridade moral.
E o caminho para isso é fácil e mais comum do que imaginamos. Don Juan atesa: “Você não sabe quantos hipócritas eu conheço que, com alguns poucos estratagemas, limparam as manchas e os crimes de sua juventude. E aí, usando o escudo e o manto da religião, se transformaram em cidadãos respeitáveis, isto é, os homens mais canalhas deste mundo”. Quantos exemplos recentes de pessoas que fazem uso da religião para apagar erros do passado, mas sem corrigi-los, de fato, você consegue pensar? Eu mesmo consigo lembrar de vários.
Não apenas o humor das peças de Molière segue afiado, mas também suas críticas. Uma ótima e rápida obra para uma reflexão sobre ética, moral e autenticidade em tempos de cidadãos de bem cada vez mais organizados. Se, por um lado, as sociedades modernas falam tanto em avanços e evoluções, por outro, a obra de Molière nos lembram que certos vícios humanos persistem, levemente alterados ou não, ao longo dos séculos.
O trecho em que Molière fala da hipocrisia social
Leia na íntegra o trecho em questão e confira por si mesmo as semelhanças entre os discursos de Don Juan e os atuais cidadãos de bem. A tradução é de Millôr Fernandes.
DON JUAN – Fique tranquilo, eu não mudei em nada. Não precisa temer, meus sentimentos são os mesmos de sempre.
LEPORELO – Não o atemorizou em nada nem mesmo a estupenda maravilha dessa estátua andando e falando?
DON JUAN – Sim, sim. Bastante. Aí tem qualquer coisa que não consigo entender. Mas, seja lá o que for, não convence o meu espírito nem abala a minha alma. E se afirmei querer corrigir minha conduta e passar a viver uma vida exemplar, você devia ter percebido que isso é apenas um projeto político e, como tal, um estratagema para iludir os tolos. No caso, me permitirá continuar a me servir de um pai que sempre me foi útil. E me acobertará, preventivamente, de mil situações desagradáveis que ainda irão me acontecer. Tenho prazer em te confiar isso, Leporelo. É confortável ter alguém que nos conheça a fundo e saiba os verdadeiros motivos que nos conduzem às ações.
LEPORELO – O quê? O Senhor, que não acredita absolutamente em nada, acredita que vão acreditar que é um homem de bem?
DON JUAN – E por que não? Existem muitos outros que representam esse mesmo papel e usam a mesma máscara para carambolar o mundo.
LEPORELO – Carambolar? É… (À parte) Ah! Que homem! Que homem!
DON JUAN – Disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas está na moda. E todos os vícios na moda são virtudes. O personagem do homem de bem é o mais fácil de interpretar em nossos dias. Qualquer hipócrita o representa com razoável perícia. E fica quase impossível saber se estamos diante de um hipócrita no papel de um homem de bem ou se conversamos com um homem de bem que banca o hipócrita para não ser humilhado como homem de bem. O exercício da hipocrisia oferece maravilhosas possibilidades. É uma arte da qual faz parte natural a impostura, como o blefe, em certos tipos de jogos. E mesmo quando a impostura é transparente, ninguém ousa condená-la, com medo de que isso abra o caminho para a condenação de imposturas mais habilidosas. Todos os outros vícios dos homens estão sujeitos a censuras. Qualquer um se sente no direito e até na obrigação de condená-los. Mas a hipocrisia é um vício privilegiado, que tapa a boca de todos que o percebem e transita na corte com vaidosa impunidade. Ficou até elegante. Chic. Hipócritas usam as mesmas máscaras, os mesmos ademanes e comportamentos, e formam uma sociedade fechada e autoprotetora. Ofender um significa todos te caírem em cima. E mesmo os que, vivendo em meio a eles, agem de boa-fé e ficam perturbados com determinadas ações… Estranhas, sempre acabam envolvidos. Caem ingenuamente nas trampas dos hipócritas e, sem saber, dão crédito à cambada. Você não sabe quantos hipócritas eu conheço que, com alguns poucos estratagemas, limparam as manchas e os crimes de sua juventude. E aí, usando o escudo e o manto da religião, se transformaram em cidadãos respeitáveis, isto é, os homens mais canalhas deste mundo. Por mais que se saiba de suas intrigas e futricas, que se conheça e divulgue aquilo que realmente são, nem por isso eles perdem o prestígio e a estima das pessoas. Basta que inclinem a cabeça um pouco, humildemente, que deem um ou dois suspiros fundos e mortificados, e rolem os olhos em direção ao Céu, para serem reabilitados de tudo ou de qualquer coisa. É nesse refúgio favorável que eu quero me abrigar e colocar em segurança meus interesses. Claro, não abandonarei nenhum dos meus saudáveis hábitos. Apenas, de hoje em diante, vou me ocultar um pouco, agir mais em surdina. E se alguém me descobrir, terei, sem mover sequer um dedo, toda a cabala correndo em meu socorro, defendendo os meus, e os dela! Interesses, contra tudo e contra todos. Enfim, adotei a maneira de fazer impunemente tudo que me der na telha. Posso me erigir, de agora em diante, em censor dos atos alheios, julgando duramente a todos; reservando meus elogios apenas ao comportamento de uma pessoa, a única que sempre achei acima de qualquer suspeita. (Pausa) Eu. Se alguém ousar me ofender, por mínima que seja a ofensa, eu não o perdoarei jamais, guardar-lhe-ei um ódio irredutível, e ostensivo, o que intimidará outros candidatos à difamação. Serei o vingador dos interesses do Céu e, sob esse manto assustador, perseguirei meus inimigos, acusando-os de impiedade, desencadeando contra eles o zelo e a perseguição dos carolas que, sem conhecimento de causa, os cobrirão de injúrias, condenando-os à execração pública. É assim que se usa a fraqueza, a ignorância e a pusilanimidade dos homens. É assim que um sábio torna virtudes os vícios de seu tempo.”