O poema “Dolores”, de Auta de Souza, nos apresenta uma reflexão sobre dores e lutas internas, em um tom bastante melancólico e provavelmente autobiográfico.
Dolores, de Auta de Souza
Já vão caminho no cemitério
Meus louros sonhos em visões negras,
E vão-se todos no Azul sidéreo
Como uma nuvem de toutinegras.
A noite de ontem levei chorando
Todo o passado de meus amores;
E o dia ainda me achou rezando
No imenso terço de minhas dores.
Vejo na vida longo deserto
Sem doce oásis de salvação.
Dentro em minh’alma, doida, chorosa,
De pobre moça tuberculosa,
Cheio de medo, trêmulo, incerto
Bate com força meu coração.
E assim morrendo, coitada, aos poucos,
Convulsa e fria, louca de espanto,
Solto suspiros, soluços roucos,
Olhando as cruzes do Campo Santo.
Porque me lembro que muito breve
Leva-me a ele tanta dor física.
E dentro em pouco, branco de neve,
Verão o esquife da pobre tísica.
Análise do poema “Dolores”
“Dolores”, de Auta de Souza, fala sobre a melancolia e a aceitação de um destino trágico. A autora retrata a efemeridade da vida e o inevitável encontro com a morte.
Já nos primeiros versos, notamos esse caminhar para o final, com “louros sonhos” transformados em “visões negras”, uma metáfora para as perdas e ao fúnebre. Essa imagem de sonhos que seguem o caminho do cemitério simboliza o abandono da esperança e da alegria.
A simbologia adotada é rica e sombria: os “Azul sidéreo” pode ser interpretado como o céu estrelado ou até mesmo o paraíso, em contraste com a “nuvem de toutinegras”, aves que trafegam em bandos e são associadas a presságios ruins, anunciando desgraças ou morte.
O eu-lírico passa de um passado memorável, em que carregava suas dores ao dormir “chorando / Todo o passado de meus amores”, para a dura realidade de seu presente, marcado pela dor e pela prece, em um estado constante de luto e sofrimento.
A expressão “longo deserto / Sem doce oásis de salvação” é uma metáfora potente para a solidão e para a desesperança que a cercam, agravadas pela descrição como “pobre moça tuberculosa”, revelando sua fragilidade diante da tuberculose que, na época, era frequentemente fatal e sem cura.
No poema, os batimentos do coração se apresentam como símbolo da vida que insiste a viver, mesmo diante ao “medo, trêmulo, incerto”.
No último verso, a menção ao “esquife da pobre tísica” é uma referência direta à morte antecipada e ao declínio do corpo e do ser, inerentes à tuberculose, que foi causa da morte de parentes próximos a Auta de Souza — inclusive dela própria.
“Dolores”, assim, lendo com os olhos de hoje, funciona como um poema de despedida, não apenas da poeta, mas de todo ser humano diante da inescapável realidade da morte.