O poema “Falando ao Coração”, de Auta de Souza, transporta o leitor para um cenário onde a natureza e os sentimentos humanos se entrelaçam de maneira sublime.
“Falando ao Coração”, de Auta de Souza
Desperta, coração! vamos morar
N’uma casinha branca, ao pé do Mar…
Que seja linda como é linda a Lua
Que em noites santas pelo Azul flutua:
Imaculada como a luz do Amor,
Alva de neve como um sonho em flor.
Quando a Noite vier… se no meu seio
Estremeceres cheio de receio,
– Tremendo a sombra que amortalha o Dia
E cobre a terra de melancolia, –
Longe do mundo e da desesperança,
Hei de embalar-te como uma criança.
Quero que escutes o gemer profundo
Do Mar que chora a pequenez do mundo
E ouças cantar a doce barcarola
Da noite imensa que se desenrola,
Dando perfume ao coração dos lírios,
Trazendo sonhos para os meus martírios.
E quando o Sol nascer; quando, formosa
Como uma garça branca e misteriosa,
Batendo as asas cor de neve, a Aurora
Vier cantando pelo mundo a fora,
Rufla as asas também… e forte, então,
Tu podes palpitar, meu coração!
Acorda para a Vida e canta e canta,
O Sol da Terra – iluminada e santa!
Deixa o teu sonho de saudade e dores
Dormir no seio trêmulo das flores…
E foge e foge pelo Espaço, à toa,
Pomba exilada que a seus lares voa!
Esquece a louca e pálida amargura
Que há tantos anos meu viver tortura…
Canta o teu hino de ilusão querida,
Esquece tudo o que não seja a Vida,
E, para o Céu das alegrias mansas,
Conduz nas asas minhas esperanças…
Não vês? Minh’alma é como a pena branca
Que o vento amigo da poeira arranca
E vai com ela assim, de ramo em ramo,
Para um ninho gentil de gaturamo…
Leva-me, ó coração, como esta pena
De dor em dor até à paz serena.
Desperta, coração, vamos morar
N’uma casinha branca, ao pé do Mar…
Quero que escutes, a sonhar comigo,
A queixa eterna do Oceano amigo
E ouças o canto triunfal da Aurora
Batendo as asas pelo Mar a fora…
Barro Vermelho.
Análise do poema “Falando ao Coração”
O poema “Falando ao Coração” de Auta de Souza se desdobra como um convite ao despertar para a vida, utilizando o cenário da natureza como metáfora para um refúgio dos tormentos que vivemos internamente, em nossas mentes e corações. O “corre da casa ao lado do mar” representa não apenas um espaço físico, mas um estado de espírito: tranquilo, puro e repleto de beleza natural, simbolizando um lugar de paz e renovação para o coração.
Auta utiliza a natureza como um elemento vivo e reativo, capaz de ecoar os sentimentos mais profundos do ser humano. O mar, com seu “gemer profundo”, é personificado como alguém que chora a “pequenez do mundo”, sugerindo uma sensibilidade profunda ao estado lamentável da condição humana, mas também apresentando a profundidade como uma fonte de empatia e compreensão.
O ciclo natural de noite e dia serve como metáfora para a alternância entre o medo e a esperança, a dor e a alegria, e os sonhos e a realidade. A noite traz sombras e melancolia, mas também é um tempo para descansar e ser consolado (“Hei de embalar-te como uma criança”), enquanto o amanhecer simboliza a renovação, um novo começo onde “Tu podes palpitar, meu coração”.
Em sua essência, o poema é um chamado à libertação dos encargos emocionais que reprimem o espírito. Auta de Souza encoraja um despertar para as alegrias simples da vida e um retorno às esperanças e sonhos inocentes. É, ao mesmo tempo, um gesto de esquecimento dos sofrimentos passados e uma marcha em direção à “paz serena”.
Assim, “Falando ao Coração” transcende o dialogar com o coração, um órgão vital. É, verdadeiramente, uma conversa com a alma, um convite a viver com leveza e reverência diante da imensidão e da beleza natural que nos rodeia.