No poema “Ciúme”, de Auta de Souza, a temática do ciúme é explorada de maneira sutil, metafórica e cheia de delicadeza.
Ciúme, de Auta de Souza
Não brinques ao sol, menina!
É tão preto o teu cabelo,
Que exposto ao sol que ilumina,
Jamais, jamais quero vê-lo.
Não sabes por que, Maria?…
Do sol o brilhante açoite
Só vem à terra de dia
Porque não gosta da noite.
E eu temo que ao ver formoso
O teu cabelo, um tesouro!
O sol, que é tão invejoso,
Não queira torná-lo louro.
Louro, Maria! o repouso
Onde vacilo com a cruz,
O doce abrigo onde pouso
Meus olhos fartos de luz?
Não quero, flor de minh’alma,
Linda esperança em botão…
O dia não é que acalma
As mágoas do coração.
Quando a dor em fúria brusca
Lhe vem magoar o seio,
A treva da noite busca
Para chorar sem receio.
E a minha noite mais pura
No teu cabelo é que eu vejo;
Esqueço toda a amargura
Se a tua cabeça beijo!
E agora, santa, avalia
Que pena teria eu
Se chegasse a ver um dia
O teu cabelo, Maria,
Da cor dos astros do céu!
Nova Cruz – Novembro – 1897.
Análise do poema “Ciúme”
“Ciúme” é um poema que mistura sentimentos de posse e apreciação com a natureza.
A personagem fala para “Maria“, provavelmente uma figura amada, alertando-a para não brincar ao sol. A preocupação evidente nas primeiras estrofes revela o tom do poema: um ciúme carregado de afeto e medo de transformação.
O cabelo preto de Maria é destacado como peça central do poema – é um “tesouro” que o sujeito poético quer preservar. Há uma clara valorização do escuro, associada tanto à beleza individual de Maria quanto ao conforto que isso traz ao eu-lírico.
Curiosamente, o sol – geralmente simbolizando o positivo – é retratado como “invejoso”, o que poderia roubar a singularidade dos cabelos da amada transformando-os em louros.
O poema também contrasta a luz e a escuridão de maneira única. Em vez de temer a noite, o sujeito poético a procura como um refúgio, uma “noite pura” encontrada no cabelo de Maria.
Há um inversão dos papéis tradicionais da luz e da sombra, tal que o consolo vem da ausência da luz, e não de sua presença.
Além disso, “Ciúme” nos mostra uma ruptura com a ideia de que apenas o dia – ou a luz – pode acalmar as “mágoas do coração”. Ao invés, é na noite e na escuridão que o sujeito poético encontra espaço para expressar sua dor.
Por fim, o poema fecha com uma declaração de temor e admiração, reforçando o quanto o cabelo preto da amada é parte essencial da sua concepção de beleza e conforto, algo que a comparação com “astros do céu” sublinha como sendo uma preciosidade inigualável.